quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A P O C A L I P S E

O SERTÃO VAI VIRAR MAR -Não acho que o REPASSANDO seja para dar aulas de teologia, navegar erudição, despencar para cima, na direção da estratosfera infinita e vazia. Mas o Malheiros apelou para minha opinião sobre Apocalipse e vou despretensiosamente dizer o que penso! “Qui bene distinguit bene docet”. Apocalipse é qualquer um dos escritos antigos, judaicos ou cristãos, que contêm revelações, em particular sobre o fim do mundo, apresentadas quase sempre sob a forma de visões. O termo hoje é referido principalmente ao último escrito do Novo Testamento, atribuído ao evangelista João. Gramaticalmente, apocalýpsis é ato de descobrir, descoberta, revelação. Do verbo apocalýpto: desmascarar, forçar a falar, figurativamente revelar. O alemão guardou, em Offenbarung, a proximidade do sentido original. Mas estou ensinando padre-nosso a vigário!

CRUZAR OS BRAÇOS OU ENFRENTAR - Para entender o Apocalipse de João, é preciso antes entender a situação da época. Já haviam morrido as testemunhas oculares da vida de Jesus. Restaram os pequenos grupos de cristãos, isolados e perdidos, em meio ao mundo pagão do Império Romano. A estes pequenos grupos, João, o último sobrevivente, empresta o pomposo nome de Comunidade: as Sete Comunidades da Ásia! Todas profundamente inseguras, quanto à própria identidade: se continuavam israelitas ou agora eram outra coisa! Se deviam cruzar os braços, perante o mundo divorciado dos ideais de Jesus e simplesmente aguardar a Segunda Vinda. Se deviam conservar Jerusalém e o Templo, como centro e sentido da Fé cristã ou espalhar-se pelo mundo pagão. Se a expectativa entusiasmada, despertada pelo Homem de Nazaré, não teria sido entendida de forma otimista demais, ingênua e ilusória.

SENTENCIADOS COMO INIMIGOS DE DEUS – As inseguranças viraram temores, com o tempo pavores reais, na perseguição de Nero, seguida pela de Domiciano. Os cristãos eram realmente dados então em espetáculo: como alimento circense das feras famintas e como tochas comburantes, para iluminar noitadas. Ser cristão era crime de lesa-pátria. Negava os fundamentos do Império, um dos quais era a sacralidade divina do imperador. Sendo grave traição aos símbolos da Pátria, os seguidores do cristianismo eram automaticamente sentenciados ao martírio. Não no sentido idealizado e indolor de nossas imaginações distantes, resguardadas das feras e das chamas. Mas no sentido de crime contra o Estado, punido com necessária, severa e cruel erradicação. Matavam-se os cristãos, na certeza de se estar defendendo a Pátria e agradando aos Deuses. Repetia-se, com os seguidores, o mesmo processo acontecido contra Jesus, executado como inimigo de Javé e de Israel.

AS VERDADES DE CADA UM – Fundamenta melhor o entendimento do Apocalipse de João recordar as diversas tendências religiosas do tempo. A maneira de entender o divino e escatológico determina o tipo de engajamento político e social. Havia o entendimento religioso dos fariseus (sem pejorações!), ciosamente aferrados à Lei mosaica e às promessas de Deus, no passado do Povo. “Estamos garantidos, somos filhos de Abraão, vamos vencer o Império, podemos enfrentá-lo! Faremos nossa guerra de libertação! Apesar da desproporção de nossas forças, na hora H Deus há de comparecer ao campo de batalha, para nos dar a vitória e realizar as promessas antigas. Somos fiéis a Deus, Deus há de ser fiel a nós! Cumprimos as obrigações da Lei divina, por isso Deus garantirá nosso sucesso. Demos lealdade a Deus, Ele então está obrigado a ser leal conosco!”

RELIGIÃO DO OBA-OBA – Havia o entendimento religioso rigoroso e isolacionista dos essênios. “O mundo é caso perdido, o melhor a fazer é segregar-se. Só o pequeno número dos eleitos será salvo. É entre eles que queremos estar! O Império é fonte de todo o mal. Nada podemos contra ele! É indispensável o afastamento, para evitar a contaminação. Em mundo desviado, em meio a tanta perversidade e correndo nós tanto perigo, o certo é nos trancarmos em nossas fortalezas e lá nos escondermos. Reencontraremos então alegria e sentido, louvando o Senhor. A massa é imprestável e o melhor que o fermento faz é proteger-se”. Distanciada do mundo, não informada pela realidade, a fé dos essênios virou oba-oba laudatório piegas. Presunção vaidosa de “não ser como os outros”, de não pertencer ao mundo do pecado e da morte.

CÉU PRA ELES, MUNDO PRA NÓS – Mas havia também o entendimento religioso dos saduceus. Estes formavam a elite econômica da nação. Eram os ricos, os donos das terras e da mercadoria valiosa, para uma sociedade que continuamente sacrificava animais no Templo: os rebanhos. O faturamento maior dos saduceus era em cima da religião nacional. O povo adorava a Deus com os carneiros sacrificados, comprados aos saduceus. Os saduceus enchiam o bolso, com o dinheiro de seus carneiros vendidos, para o povo sacrificar a Deus. Filhos deste mundo, mundanos bem sucedidos, a terra era o céu deles. Sobretudo muita terra, para os trigais e rebanhos. Aos poucos, passaram da fé para a letra morta e, da letra morta, para o apagão. Não acreditavam em mais nada. Religião, para eles, era apenas ocasião de faturamento. Ressurreição dos mortos? Conversa prá boi dormir! Consolo ilusório, para quem transfere, para a outra vida, as satisfações de que foi privado, na vida presente.

E O APOCALIPSE COM TUDO ISSO? –“Apocalipse” é certa maneira de ler a História, a partir da fé que se tem. Os apocalipses surgem em épocas, em que a Fé das Comunidades é contestada e brutalmente questionada, pela violência dos fatos. A mentalidade da sociedade maior envolve as Comunidades. A corrente da História que as permeia, por dentro e por fora, se infiltra no seu modo de pensar. Declara a existência, baseada na fé, como sem valor, sem fundamento, sem consistência e sem futuro. Essa contestação generalizada se abateu sobre as pequenas comunidades cristãs. Muitas vezes, estourou em perseguição, provocando reações variadas e até opostas, entre os próprios membros das Comunidades. Esquematizando: os fariseus assumiram a falsa teologia da retribuição; os essênios alienaram os conteúdos sociais e históricos da fé; os saduceus jogaram na cesta de lixo as esperanças antigas, optando pelo dinheiro e pela riqueza. Bem parecido com o mundo e a religião de hoje!

É DE DEUS A VITÓRIA FINAL – No Apocalipse, João tomou partido claro, a favor das pequenas Comunidades oprimidas, contra o Império que as perseguia. Colocando-se do lado dos perseguidos e oprimidos, pôde ler os fatos da História com novos olhos. Estes lhe permitem revelar o Plano de Deus, que favorece os pequenos. Desta maneira, João deu, às Comunidades, injeção de coragem e ânimo. Leu e interpretou os acontecimentos da História e do Mundo, à luz da fé. Humanamente falando, isso era muita pretensão. Quem eram os cristãos, para fazerem a interpretação abrangente da História? Minúsculo grupo de gente, sem expressão alguma, no grande mundo das nações! De onde tiravam força e coragem, para desafiar os poderosos? Não da simples análise da realidade. Isto não teria sido suficiente para animar as Comunidades e poderia ser contestado, com outros tantos argumentos. A coragem vinha de uma certeza absoluta : “Deus estava com eles e seria vitorioso, no final!” As Comunidades assumiram então politicamente a Fé! Isso fez com que tomassem atitudes políticas e elaborassem estratégias de ação. A raiz de sua ação, porém, não nascia da “carne ou do sangue”, mas do Projeto divino na História da Salvação.


MAL ENTRANHADO NAS ESTRUTURAS – Na leitura que o Apocalipse faz dos fatos, a dimensão política da fé é clara e manifesta. João dá o nome aos bois, embora de maneira velada, apocalíptica. O mal contra o qual o cristão deve lutar não existe solto no ar. Está encarnado nas estruturas políticas, sociais e religiosas do Império. Esse tem, a seu favor, o aparelho de propaganda do Estado. João chegou a esta conclusão, não por deduções teóricas, mas através da dolorosa experiência dos fatos, vividos pelos cristãos das Comunidades. Hoje, tudo indica que a Igreja vive processos semelhantes. Ainda está na fase de leitura dos fatos, leitura crítica e contestadora. Se a Igreja for fiel a Deus e ao Povo, os fatos irão obrigá-la a passar para a etapa seguinte, concreta e política.

TRÊS VIAGENS EQUIVOCADAS – Por outro lado, não adianta forçar a passagem. Ela só será verdadeira e autêntica, quando for fruto da pressão da realidade sobre a consciência dos cristãos. Passagem apressada e não criteriosa poderá produzir saduceus fujões e essênios deslumbrados, agnósticos materialistas e carismáticos alienados. Nenhum dos dois contribuiu para a libertação do Povo, nem para o crescimento da Fé. Ambos separam fé e vida. Uns, pela secularização total da religião; outros, pela particularziação monopolista da salvação e da posse de Deus. Dois becos sem saída! Os saduceus vivandeiros acabaram junto com o imperador romano, no qual se apoiavam. Os essênios, cansados de gritar por Deus, cometeram suicídio coletivo na Fortaleza de Massada, no ano 72, para não caírem vivos nas mãos dos romanos. Decepcionaram-se com a aparente ausência de Deus, nos reais acontecimentos. Os fariseus, para obrigar Deus a agir, provocaram a Guerra Judaica, na qual os generais romanos Vespasiano e Tito destruíram a cidade, arrasaram o Templo e espalharam os judeus pelo mundo. Os três grupos tiveram mais fé em seus próprios projetos, em seu próprio poder e em suas próprias idéias sobre Deus e sobre o Povo, do que Fé em Deus e Fé no Povo.

DISCURSEI PORQUE VOCÊ PEDIU - Prezado Malheiros, desculpe o estilo professoral. Não me senta bem a fatiota de dono da verdade. Entrei no assunto porque você solicitou minha opinião. A verdade que interessa é a verdade que nossos olhos enxergam. Experiências pessoais valem mais do que longos tratados. A história humana, em essência, é sempre a mesma. Só mudam os termos para descrevê-la. O Apocalipse de João recorda realidades fundamentais: a velha e quase infinita luta entre o bem e o mal; a aparente vitória do mal sobre o bem, dos maus sobre os bons, dos velhacos sobre os ingênuos. Fonte do pecado não é apenas o coração humano e a conduta individual, mas também a organização social e as formas de exercícios do poder. O Apocalipse de João é venenoso libelo contra o pecado social. Descreve cripticamente a vitória definitiva e final de Deus, com recompensa divina à fidelidade dos bons. Tudo isso claro, nas entrelinhas e na linguagem cifrada, mas inteligível aos destinatários. Mas Malheiros, deixemos as escatologias em paz e você fale-nos de suas viagens e de suas experiências, como homem do “grand monde! – Com a amizade de sempre. - Luis

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