terça-feira, 2 de outubro de 2007

EIS NO QUE DEU A PRETENSA ISENÇÃO POLÍTICA

“SANTO OU DEMÔNIO?” – Com tal manchete espalhafatosa, semanário internacional, algum tempo atrás, publicou reportagem sobre pretensa “omissão” do Papa Pio XII, em relação aos crimes de Hitler. Abre a matéria com venenosa acusação: “Por mais que o Vaticano tente livrar-se do assunto, a atitude do papa PIO XII continua a pairar, como cadáver insepulto, lançando uma sombra sobre a Igreja como um todo”. O semanário requenta o controvertido litígio: o papa foi deveras omisso e covarde ou usou diplomático silêncio, para salvar milhares de vidas, não passando as acusações de “calúnia e ficção”. Assim contra-ataca um teólogo do Vaticano, mencionado pela revista. A polêmica é antiga e foi formulada a primeira vez pelo grande teatrólogo alemão Rolf Hochhuth, na peça “O Vigário de Cristo”. O drama do padre Fontana, protestando contra o silêncio do Vaticano e sendo esmagado pelos nazistas, sem nenhuma reação por parte da Igreja, comoveu as platéias do mundo e deu origem a extenso dossiê, publicado sob o título: “Summum jus, summa injuria: durfte der Papst schweigen?” (Suma injúria, o Papa podia ter calado?)

NÃO EXISTE CASAMENTO ENTRE CRISTO E BELIAL – Belial é um dos nomes bíblicos para o Príncipe deste mundo. A querela reportada remete ao problema das relações entre a Igreja de Cristo e os Poderes terrenos. Desce até aos fundamentos da História da Salvação e da Igreja. Ambas começaram sua existência como apelo divino, para que escravizados se libertassem. Na sociedade do Império romano, composta de maiorias escravizadas, a fome de libertação e dignidade espalhou-se rápido, como fagulha em palheiro. O populacho espezinhado identificou-se com a Boa Nova de libertação e igualdade. Libertação da escravidão e igualdade fraterna, pela primeira vez na história humana, passaram a ser sinônimo de conversão religiosa. Conversão mais exigente do que mera troca de filosofias. Estas não levam à batalha e muito menos à cruz.

O ACONTECIMENTO VIROU INSTITUIÇÃO – O desenrolar da História empurrou a Boa Nova na direção das teorizações. O Acontecimento virou teologia. O Cristianismo, passada a fase inicial dos profetas e mártires, foi acoplado ao poder temporal e adotou procedimentos imperialistas do poder civil. Por tais vias, caiu frequentemente na tentação de tornar absoluto o poder que é exercido “com autoridade divina”. Deus não erra, logo seus representantes também não erram. Talvez por tais vielas da mente, encontre-se a chave para entendermos as acusações contra Pio XII. Não somos ingênuos nem idiotas e sabemos que a Igreja é santa, mas também é pecadora. Tem sido preferencialmente pecadora, quando exerce poder à maneira do mundo, substituindo o Evangelho da liberdade pelas imposições da servidão. Outros dados históricos ajudam a formarmos a consciência crítica.

DIPLOMACIAS ENTRE VATICANO E NAZISMO – Há mais de 70 anos, o nazismo tomava o poder na Alemanha, abrindo caminho ao poder absoluto de Adolf Hitler. Menos de dois meses após, iniciaram-se negociações entre o Vaticano e o Regime nazista, das quais resultou a assinatura de uma Concordata. Quais os seus termos? 1º) O Vaticano e o Episcopado alemão reconhecem o governo nazista como autoridade legítima. Para serem nomeados, os bispos alemães serão obrigados a pronunciar o juramento de fidelidade ao novo Governo. 2º) O Governo nazista reconhece a liberdade da Igreja Católica e de suas organizações. 3º) A Igreja Católica promete abster-se de atividades políticas e proibir seu clero de agir neste campo. Sindicatos e partidos cristãos serão suprimidos. 4º) Os clérigos ficarão isentos de servir nas forças armadas. Em dois artigos no Osservatore Romano, o Secretário de Estado do Vaticano explica que a Concordata está de acordo com a doutrina clássica da Igreja, segundo a qual a Igreja deve manter-se isenta e neutra perante qualquer forma de governo, seja ditadura ou democracia.

ATÉ O SILÊNCIO É PROFUNDAMENTE POLÍTICO – Decorridas as mais de sete décadas, passados os riscos e exorcizados os medos, o que se escondia atrás dos fatos?. Da parte do nazismo, o interesse de ser reconhecido internacionalmente, dentro e fora do país, por uma entidade de peso como a Igreja Católica. E da parte dos poderes da Igreja? Análise objetiva apontaria medo de enfrentar o nazismo, medo do comunismo, respeito humilhante e interesseiro pela autoridade constituída. Atitudes de profundas conseqüências políticas, tais como o desinteresse pela sorte de outras entidades alemãs, outras igrejas, outros grupos, outras pessoas, chegando finalmente à justificação de que a Igreja tem seu próprio campo de atuação, o campo religioso, não devendo por isso imiscuir-se em questões políticas. A Conferência dos Bispos Alemães, em 1933, ano de ascensão do nazismo, assim se expressa: “Circunstâncias podem obrigar a Igreja, que é entidade autônoma, a retrair-se numa migração para dentro, em processo de defesa de sua liberdade e de seus direitos”. – “Migração para dentro?” Contradição nos termos: o fermento migrando de volta para a lata!

DESGRAÇAS COMEÇAM COM ACEITAÇÃO DE PRIVILÉGIOS – Algumas conclusões: A essência da tradição judaico-cristã postula inapelavelmente defesa e promoção da justiça universal, que não distingue entre judeu e grego, escravo e livre, cristão e socialista, homem e mulher. Pela Concordata, a Igreja aceitou receber garantias e privilégios só para si, como entidade separada, como fermento trancado. A “migração para dentro” continua sendo constante tentação e se manifesta nas insistências, para que a Igreja restrinja-se ao espiritual e ao religioso, que consistem na preparação dos fiéis para a salvação eterna. Abstendo-se “politicamente” e apelando para a isenção, os personagens desses tempos escuros desempenharam papéis profundamente políticos: guardando o silêncio pio e omisso, que respaldou substancialmente um regime político, que foi das maiores desgraça do nosso século. Escassearam então profecia e martírio, sobrou burocracia.

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