FÁBULA DO MEU XODÓ – Nestes últimos quatro anos de minhas tribulações, devo ter escrito a fábula uma dúzia de vezes, em cartas aos amigos do coração. Aos amigos da onça também! Talvez eu já tenha contado também, em alguma escrita para você. Mas quanto mais eu a conto, mais gosto dela e mais a singela narrativa assume cores de parábola evangélica. Mas vamos lá! Dois amigos saíram para caçar na floresta, no tempo em que havia florestas. Na floresta densa, afastaram-se um do outro. Inesperadamente, de trás das moitas, surge um ursão ameaçador. O caçador mais distante, em vez de aproximar-se para somar força e socorrer o amigo, aboletou-se ligeirinho nos galhos da árvore mais próxima. O colega, sem tempo para fugir, deitou-se no chão e fingiu-se de morto. Aprendera que urso só devora o que mata.
URSO COLEGA DO LOBO DE GÚBIO – Enquanto o fujão dava graças a Deus por ter escapado e curtia a segurança do alto do galho, o urso aproximou-se do homem deitado, fingido de morto. Cheirou-lhe o corpo e não deve ter gostado da marca do desodorante. Farejou-lhe demoradamente as orelhas. Depois levantou a cabeça enfastiado, olhou com desprezo o medroso encarapitado no galho e sumiu no arvoredo. Passado o perigo, o companheiro desleal desceu da árvore e aproximou-se pressuroso.. Para disfarçar o papelão e “tirar a suja”, tentou fazer gracinha: - “O que foi que o urso tanto falou aos teus ouvidos?” O outro, suando frio do risco que correra e do pavor que sentira, recuperou o sangue frio e inventou sua versão: “O urso me disse que acompanhava Frei Manfredo, em suas caminhadas paroquiais, pelas veredas sombreadas do Amaragi. Até aprendeu com ele um pouco de latim. Recomendou que eu citasse para você um antigo provérbio: - “AMICUS CERTUS IN RE INCERTA CERNITUR!”
PARENTESCO NÃO É ESCOLHA – Talvez seja necessário passar determinadas situações, para descobrir que lealdade – Treue und Redlichkeit – é inquilina de cobertura, no edifício de nossa construção. Parentes e consangüíneos todos os seres vivos possuem. Os ratos têm mãe e irmãos e isso não cria laços de solidariedade entre eles. Conheço casos, em meu longo contato com a espécie humana, em que consanguineidade mais rimou com promiscuidade e omissão do que com magnanimidade e altruísmo. Acho misteriosa e bela a fundamentação que encontro para minha desconfiança, no cap. 19 do Livro do Gênesis. Lá se conta que o justo Lot, homem de Deus, pai extremoso, preferiu entregar aos sodomenses desenfreados as duas filhas virgens, antes que faltar com a lealdade, exigida por dimensões humanas, visivelmente mais sagradas do que a virgindade das filhas. Seta bíblica misteriosa, apontando para valores mais universais do que os pequenos interesses consangüíneos. Lição radical de crítica à família, como possível refúgio dos nossos egoísmos e freqüente e eventual trincheira das vantagens particulares. Nossa luta é pela fraternidade única de todos os filhos de Deus
IRMÃOS NA FAMÍLIA MAIOR – Foi um pouco disso o que senti, lendo e relendo os bem-vindos feedbacks dos colegas ipuaranenses Luiz Maurício,Luiz Andrade, Arlindo e Sena. Sena hesita – ou pilheria! – se me pode tratar de Você, Vossa Mercê ou Vossa Graça. Em nossa história e consequentemente em nossas psiques, o escravismo entranhou-se até na gramática. Sem ter muita certeza disso, acho que as línguas dos dois povos – espanhóis e portugueses – que mantiveram a escravidão até fins do século XIX são as únicas que transformaram as palavras “senhor/senhora” em pronomes de tratamento. Era o tratamento do negrinho/negrinha para o sinhô/sinhá. Na língua internacional da igualdade globalizada, a criança trata o outro por you, seja o outro um coleguinha ou seja o Papa ou a Rainha!. Ninguém é senhor/senhora de ninguém. Somos irmãos da família maior, a que vai prevalecer, após o disfuncionamento dos laços biológicos. Foi preciso ler nas linhas tortas por onde Deus escreve que surpreendentemente descobri, aqui próximo de minha rua, morando perto de mim, um irmão querido e sofredor:: Frei Sigismundo, viajante permanente entre a cama e a cadeira-de-rodas, após o AVC. Confrade também na Irmandade do Simão Cirineu.
INVERNO BOM E MUITA FARTURA - Naquele ano, Simão não tinha do que se queixar. Chovera bem, o pasto era abundante e o rebanho engordara. A capital se enchera de judeus ricos, advindos de todos os recantos do Império Romano. A euforia de Simão encontrava os melhores fundamentos. Era a grande semana do ano, a Semana da Páscoa! No Templo, dezenas de sacerdotes, sujos de sangue, não paravam de sacrificar os animais ao Deus Altíssimo. Simão embarcara nas ondas da Lei da Oferta e da Procura e vendera bem cinco dezenas de carneiros de sua criação. Estava de bolsos cheios, como o diabo gosta! Após tanto suor derramado e com a cidade transbordando de variadas oportunidades, era hora de dar uma voltinha pelo centro, apreciar as novidades, encarar alguma parada que valesse a pena. Aproveitar a gostosa liberdade dos momentos de solteirice provisória. Quem sabe, uma puladinha de cerca? As dracmas coçavam no inquieto bolso e a vida é bela e promissora!
“O CRIMINOSO NÃO PODE MORRER ANTES!”-“Boa romaria faz quem em sua casa está em paz”, mas a filosofia só foi descoberta por Simão a posteriori. A curiosidade foi sua desgraça. Quando pressentiu a arruaça, enfiou-se na multidão, para ver mais de perto. Era um macabro cortejo de soldados, espancando um criminoso a caminho da execução. A sentença do meritíssimo era cruz, o indivíduo não podia morrer, antes do preenchimento dos trâmites legais. Se, por excesso da tropa, morresse sem ser executado, quem pagaria o pato seria ele, o sargento, pois a corda sempre arrebenta no lado mais fraco. Mas o réu não agüentava mais tanta pancadaria, nem mais também o peso de sua cruz. Era preciso agarrar um trouxa para adjutório. Após a terceira queda, o desgraçado nem conseguia mais levantar-se do chão.
“PEGA AQUELE JUDEU FACEIRO ALI !”- Vendo o condenado quase nas últimas e temendo não poder cumprir integralmente a ordem judicial, o sargento ordenou que a sádica procissão fizesse uma pausa. Proferiu suas blasfêmias, xingou a mãe do cara, deu nele mais uns chutes, mas não adiantou: o condenado estava nas últimas. Quem agora corria riscos processuais era ele, chefe do destacamento. Alguém tinha de ajudar, se não o condenado apagaria, antes do cumprimento da sentença.. O sargento correu a vista na roda de curiosos e seus olhos pararam no despreocupado e lampeiro Simão. “Pega aquele judeu faceiro ali!” Os soldados correram em cima, aberturaram Simão e, na base da porrada, o empurraram para debaixo da cruz do réu ensangüentado. Dois olhares então se encontraram: os olhos sofridos de Jesus e os olhos raivosos de Simão Cirineu.
“O OLHAR DAQUELE HOMEM !” – O Simão bem banhado e bem vestido, bolso cheio e coração farejando aventuras, retornou já noite para a hospedaria, sujo de sangue e lama, além de depenado pela soldadesca de suas queridas dracmas. Tinha jogado fora, pior ainda, nas mãos dos infiéis, os suores de um ano de desvelo com seus carneiros. Fora humilhado, pelos pagãos, no mais profundo de sua alma israelita. Ainda por cima, o contato físico com um criminoso o tornou impuro e impedido de celebrar a Páscoa. Estás vendo, Simão, no que deu saíres por aí, com a cabeça cheia de maus pensamento?: Com a auto-estima na sarjeta e a indignação fervendo no sangue, Simão não conseguiu adormecer. O olhar daquele condenado à morte não o deixava em paz. Em toda a sua vida, nunca fora olhado daquele jeito, com tamanha gratidão e tão grande e incompreensível bondade! .Na segunda-feira, estava de volta a Cirene e, até naquela roça, já circulavam rumores estranhos sobre a ressurreição do Homem, que ele havia ajudado a carregar a Cruz.
terça-feira, 2 de outubro de 2007
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