quinta-feira, 17 de abril de 2008

BAIXADA LUGAR DE PASSAGEM, PASSAGEM SINÔNIMO DE PÁSCOA

MUITOS CRESCEMOS Á SOMBRA DE DOM ADRIANO – Sempre fui muito próximo à pessoa de Frei Adriano Hypólito, desde minha adolescência em Ipuarana. Quando surgiu a ocasião de afastar-me fisicamente da Província de Santo Antônio e oferecer meus préstimos a Dom Adriano, já bispo de Nova Iguaçu, não pensei duas vezes. O universo, coberto pelas duas singelas frases anteriores, é muito mais vasto e complexo, mas hoje não vem ao caso. Detalhes mais ou menos saborosos, mais ou menos saudosos, ficam eventualmente para outras escritas. O que lembro hoje é a FOLHA diocesana e as IMAGENS de Dom Adriano. Por puro quixotismo, assumimos produzir uma FOLHA litúrgica de conscientização eclesial e política, que viveu gloriosamente vinte anos; e foi então adotada em dezenas de paróquias, por este Brasil afora, insatisfeitas com a água açucarada, que compunha boa parte dos subsídios litúrgicos. Isso em pleno tempo da ditadura militar.

VESPA VALENTONA SERIA O SÍMBOLO DE NOSSA FOLHA – Certo domingo, nos anos de chumbo, foi distribuída, nas comunidades, uma FOLHA falsificada, com loas ao regime e ataques viperinos à teologia da libertação e à pastoral conscientizadora. Os anônimos são covardes e não assinam, por isso não descobriu-se de onde partiu a falsificação. O seqüestro martirial do bispo de Nova Iguaçu foi politicamente fundamentado com o desabuso da FOLHA em comentar a situação e escrever o que pensa. Mas isso também leva a outras viagens, que não cabem nos presentes comentários. Na FOLHA, nosso Dom Adriano praticou, em termos de concisão e sobriedade, tudo o que ensinava em Ipuarana, nas aulas de português e escrita. Mantinha duas colunas: uma de reflexão religiosa pastoral e outra de IMAGENS, suas afamadas IMAGENS, sobre situações comuns, na vida do povo. Ajudei a reunir, em alguns volumes, as IMAGENS de Dom Adriano. As VOZES DE PETRÓPOLIS publicaram.

LITURGIA CELEBRAVA A VIDA REAL DO POVO – Para o primeiro volume, Dom Adriano pediu que eu escrevesse o prefácio, que já tinha executado a tarefa da seleção. Entrei neste volume das IMAGENS de Dom Adriano como companheiro de uma jornada que começou em 1972. Naquele ano, por solicitação da assembléia diocesana, saía o primeiro número da FOLHA, semanário de conscientização e liturgia, que se propunha incrementar o casamento da vivência cristã com a realidade da Baixada Fluminense, nas celebrações de nossas comunidades. Em vez de excluída como profana, a realidade concreta do povo, levada para o culto, bem que podia servir de sopro nas cinzas, para deixar a brasa da fé mais rubra e mais comprometida.

NOSSA FOLHA DESENTOCOU UM POETA FRANCISCANO – Sem que constasse dos nossos planos, a FOLHA serviu de instrumento para desentocar o poeta que morava escondido em Dom Adriano. O resultado foi a seleção de IMAGENS da Baixada Fluminense. Em pequeninas crônicas, a poesia se transforma em vida, retomando o sentido primitivo de engajamento na feitura amorosa das coisas. Demos ao volume o título de IMAGENS DE POVO SOFRIDO. E valeu como homenagem a Diocese de Nova Iguaçu aos 800 anos do poeta São Francisco de Assis:o hino às criaturas pequenas de outro poeta franciscano. Surpresa: as IMAGENS de Dom Adriano falam com amor desta mal-afamada Baixada Fluminense.

ENTENDE MELHOR QUEM AMA E TEM COMPAIXÃO - Como lembrar-se de amor, quando o assunto é Baixada? Dela não se reportam apenas violências e escabrosidades? A Baixada não é o bem sortido supermercado dos escândalos, que abastecem o faturamento das curiosidades mórbidas? Mas os radares da compaixão captam mais a verdadeira realidade humana do que o profissionalismo insensível dos remexedores dos lixões. O amor ajuda a ver melhor. Daí que as IMAGENS de Dom Adriano constituem uma declaração de amor por este povo sofrido. Povo mártir, povo martirizado, como ele gostava de dizer.

SENTIMENTOS DE CULPA NÃO FARIAM MAL À GENTE FINA – A zona-sul do Rio começa a sentir saudades do Brasil, assim que atravessa o túnel para os lado da Baixada. A travessia do nosso mar imenso de casas proletárias deve baixar, ainda mais, o astral. É bom que o choque da miséria continue embrulhando os estômagos delicados. Em vez de boa saudade, um sentimentozinho de culpa não faria mal à gente fina, pois lembraria que o Brasil é muito mais a Baixada Fluminense do que os bairros chiques das grandes cidades. A esnobação bem nascida e bem nutrida constitui apenas um aspecto da insensibilidade nacional perante a sorte dos pobres, que ela faz questão de continuar explorando.

NAS IMAGENS DE DOM ADRIANO, CERTEZA DE QUE A PÁSCOA JÁ COMEÇOU – AS IMAGENS DE DOM ADROANO acompanham o povo da Baixada Fluminense passando de um lado para o outro. A Baixada foi sempre lugar de passagem. Continua a ser passagem das multidões de zésdasilva e zefasmariasda conceição, que produzem no Rio a riqueza dos ricos e voltam para a Baixada ainda mais pobres. Mas passagem não é também sinônimo de Páscoa? Passagem da morte para a vida. Passagem do povo pelos obstáculos do mar. Passagem da escravidão dos faraós para a liberdade da Terra Prometida. Nas IMAGENS de Dom Adriano, mora a certeza tranqüila e profética de que, também para o povão da Baixada Fluminense, síntese do povão brasileiro, já começou a caminhada pascal.

ADRIANO HYPOLITO: IMAGEM APENAS CONFIRMANTE

1. Instalado, reconciliado com Deus e su’alma, o doutor reflete sobre a pregação deste domingo luminoso e claro. O padre exagerou. Evidentemente e-xa-ge-rou. Chama a distinta: Leonor, não achas também que o padre exagerou? D.Leonor também acha, sim, que o padre exagerou. Até me cheira a subversivo. Não direi tanto, pondera o doutor, mas que exagerou, e-xa-ge-rou. Que diferença de antigamente, quando a Igreja só se ocupava das almas e das coisas santas. Voltava-se ao lar tranqüilo, não era, Leonor? Sim, era.

2. Sim, era. Velhos tempos, belos tempos, Leonor, eu acho que... Sim, ia falar com o padre. Afinal eu fui presidente da festa do ano passado. Apoiado solidamente nesse título, reflete o que dirá ao quase subversivo. Trata-se da frase infeliz: “O supérfluo pertence aos pobres”. O Reverendo sabe mesmo o que é supérfluo? O Reverendo não distinguirá a posição social de um executivo, de um ministro, de um general, ou (pra ficar na sua área) de um cardeal etc? Ou gostaria de nivelar tudo por baixo?

3. Porque, Reverendo, o que é supérfluo para minha governanta faz parte do meu status, entende? Supérfluo é palavra oca. Frases como essas, Reverendo, atiçam a luta de classes, conduzem ao caos, solapam as bases da sociedade. Onde fica então a caridade que Cristo pregou? Onde? Sobretudo nessa hora em que as forças do mal etc. E por aí afora discorreu o doutor. Argumentos apocalípticos. E o resto. Apenas o doutor esqueceu a palavrinha que não é do Reverendo: “Como é difícil um rico entrar no reino dos céus!”

terça-feira, 1 de abril de 2008

NENHUM RAIO REDENTOR ATRAVESSANDO A ESCURIDÃO DO TAPETE

Recebi correspondências pascais dos dois confrades franciscanos Frei Angelino e Frei Juvenal. Para a minha Semana Santa, cartas repletas da luminosidade, gerada pela ligação direta da Vida na Corrente. Nas costas de minha crônica do macaquinho trepado em palmeira africana, aguardado sofregamento pelo crocodilo lá embaixo, escrevi pensamentos pascais aos dois admiráveis confrades. Com os comovidos agradecimentos, pela fraterna amizade e pelos encorajamentos. Por coincidência, escrevi-lhes, após sair da frente do noticiário televisivo, festival cotidiano da miséria alheia, com os apedrejamentos de praxe, sem nenhuma consideração pelo respeito devido ao próximo, sem nenhum raio de redenção atravessando a escuridão do tapete. De um lado, os “criminosos” anatematizados; do outro, os engravatados apedrejadores. Mundão precisado de Páscoa, certamente mais nos paletós e gravatas mercenários do que na molambada moral dos pobres e mal sucedidos, enlameados com gosto e boca cheia mas, por causa dos quais, aconteceu a História da Salvação. Fios de luz pascal vislumbro, com gratidão, nas palavras amigas que me escrevem os dois confrades, edificantemente radicais em sua opção pela Fé.

NÃO FOI A ONIPOTÊNCIA MAS SUAS FERIDAS QUE NOS SARARAM – Antes da Páscoa, porém, tem o Calvário e a Cruz. Sinto-me cada dia mais perto de Jerusalém da Semana Santa. Prossigo levando minhas quedas por aí afora, não na estrada do Gólgota, mas nos consultórios médicos. Cada semana, aparecem novidades, com exigência de novos exames. É indisfarçável a deterioração da antiga vitalidade. Acho que os Poderes lá de cima convencionaram purificar-me a qualquer preço. Ao preço também da participação mais próxima nos sofrimentos de “Quem nos salvou por suas feridas”. Tal como o Filho Pródigo irrefletido, devo ter esbanjado, de maneira perdulária, os bens e a saúde que talvez pudesse agora estar desfrutando, na estação da colheita. Para os estultos, porém, como para os sábios, volat irrevocabile tempus. É pensamento realmente deslumbrante imaginar a eternidade sem mais cuidado ou preocupação, dessas que passo no momento.

E O MACAQUINHO DA PALMEIRA COM TUDO ISSO?
– Por quais portas entra, em minha crônica de Páscoa, o macaquinho africano e os outros personagens irônicos? Pela porta da fraterna ironia mesmo! Acho surpreendente como pessoas bem sucedidas sentem verdadeiro comichão psíquico, perante qualquer reconhecimento estatístico dos pobres e incompletos socialismos que conseguiram ser implantados, como forma de governo e de gerência da riqueza social. É realmente freudiano como Fidel, Che Guevara e Hugo Chávez mexem com os nervos. Por que a Providência divina ainda não despachou os saduceus comunistas para os quintos dos infernos? Quanto a mim, faço minhas provocações, pedindo ao Espírito que transforma a face da terra, que me torne mais comunista, no sentido gramatical desapegado e generoso. Mas ideologias são iguais a futebol: ganhe ou perca o time, o apego fica maior e mais irracional.

O PROBLEMA COMEÇAVA NA PRIMEIRA CASA AO LADO DE NOSSOS MUROS – Em grande e belo grupo ipuaranense, por aí afora, botaram Dom Adriano na berlinda. Alguém entusiasmado com o passado, com as boas lembranças e naturalmente com as saudades do tempo lindo que não voltam mais, perguntou se Dom Adriano fazia restrições à formação do nosso Seminário. Dom Adriano gostou da pergunta para entrar no assunto: isolamento do Seminário da situação geral do povão em redor. Deu, como exemplo, a migração permanente dos jovens do Brejo, para o Rio e São Paulo, onde eram cortados impiedosamente dos laços familiares e das tradições paternas. A debandada socialmente injusta acontecia a partir da primeira casinha, no outro lado dos muros do Seminário. Esta espécie de problema nunca foi colocada, em nossa formação. Dela as preocupações sociais ficaram fora. No lado de dentro dos muros, não chegavam os clamores das famílias dilaceradas.

ARRANCADO DO BREJO DA PARAÍBA E PLANTADO NO POLO NORTE – Ipuarana, certamente também muitos outros seminários, poderiam ser arrancados do chão, como na pia legenda da Casinha de Loretto, e plantados em qualquer outra geografia do mundo ou até mesmo no Pólo Norte. Só precisaríamos trocar as roupas. Tudo continuaria a funcionar bem, com previsibilidade, dentro do esquema. Nosso Dom Adriano, em palavras mais delicadas do que as minhas, atribuía sua conversão menos à rotina religiosa da Província do que à bagunça popular incontrolável da Baixada Fluminense. Como papa, dizia ele bem humorado, não canonizaria indivíduos, mas o Santo Povão Brasileiro mártir. Posso atestar que a devoção do São Povão pelo seu bispo desinstalado e disponível era correspondida. Em vez de virar arcebispo ou cardeal, andou levando puxões de orelhas de burocratas curiais carimbeiros, por seu desvelo com a Justiça. O que não é novidade, desde os procedimentos processuais da primeira Quinta Feira Santa à noite.

O QUE VOCÊ FAZ AÍ SOZINHO NO BANCO DA IGREJA? – Por falar em Dom Adriano e nos queridos recantos do passado, conto-lhes a pequena saga do Zé Carola. Zé era também da Paraíba, arribado para o Rio. O que para ele sobrou, no Sul Maravilha, foi uma flanelinha, na frente da Catedral de Nova Iguaçu, para zelar os carros dos bacanas. De família intensamente devota, o Zé não perdeu a religião nem a fé, juntamente com as raízes que lhe foram roubadas. Ao contrário, na solidão desamparada e sem afeto da cidade grande, Zé aferrou-se, de corpo e alma, às rezas de sua mamãe. Entre um carro e outro a vigiar, dava suas corridas para dentro da Catedral. Lá sentava-se no banco da frente e olhava para o altar. Isso tantas vezes e com tanta freqüência, que terminou gerando desconfiança. A admiração só cresceu, quando sacristão e vigário constataram que aquele nordestino magrelo não era ladrão dos cofres da igreja. Os dois perguntaram: - “O que você faz aí sentado o tempo todo?” – “Não faço nada!” – “Mas então o que é que você reza tanto? – “Não rezo nada, fico olhando para Ele e Ele fica olhando para mim!”

LÁ DE BAIXO OS RICOS PERDULÁRIOS AVISTARAM ZÉ NO SEIO DE ABRAÃO – Certa manhã garoenta, Zé Carola foi atropelado, em suas correrias entre os automóveis. Levado às pressas para o Hospital da Posse, foi jogado no catre de uma enfermaria, como indigente. Na hora certa, os outros doentes recebiam visitas, menos o Zé. Ninguém o visitava, mas ele fez um pedido especial, fácil de ser atendido. Suplicou que deixassem uma cadeira vazia ao lado de sua cama. A enfermeira, em tom de galhofa, perguntou para quê? Zé respondeu que, quando as outras visitas saíam, a dele chegava. Sentava-se na cadeira e ficava olhando para ele dizendo: - “Zé, sou eu agora que olho para você!” Foi quando abriu vaga de anjo lá em cima e o Administrador não teve muito trabalho de escolher o substituto. No Hospital-açougue, Zé contraiu grave infecção, que não demorou a transportá-lo dos brejos e áridos deste mundo para o Seio de Abraão. Lá de baixo, os proprietários dos carrões brilhantes olhavam para cima, sem transporte para fazer a travessia. - Pois São Zé Carola do Brejo de Lagoa Seca leve a todos vocês nossos melhores votos de Páscoa!

Com minha amizade – Luís