HÁ MUITO EU NÃO CHORAVA – Nas filas infindáveis das confissões em Canindé, chega finalmente a vez dela. Aproxima-se de rosto ardendo do calor da viagem e senta-se meigamente ao meu lado, com olhos transparentes e o reverente silêncio de quem veio ao mundo sem pecado original. Após luminoso sorriso de empatia e acolhimento, conta seus pecados. Veio do sertão de Araiozes, no Maranhão. Viagem comprida, quase dois dias pelos caminhos. Veio agradecer a Deus e a São Francisco a graça pelo marido, “que deixou de beber e de me espancar”. E a família? “Tive 14 filhos, mas Deus levou oito; fizemos tudo, mas deve ter sido vontade de Deus”. Vivem de quê? “Meu marido planta roçado; quando chove, dá para não morrer de fome; eu e as meninas fazemos chapéu; a gente escapa com as graças de Deus e de São Francisco”. E a romaria? “Estou achando tudo um céu aberto! Nem ligo mais para o que sofri na viagem. Para o ano eu volto!” Olhos se umedecem de contida emoção, na penitente e no confessor. Ocasião rara e privilegiada de constatar que o essencial, na vida humana, é mesmo invisível aos olhos.
DEZ HORAS POR DIA NO CONFESSIONÁRIO – É a média, nos últimos dias da novena. No galpão imenso do estádio coberto, filas intermináveis, sempre acrescidas com a chegada contínua de novos caminhões de romeiros. Lá estão eles, temerosos e compenetrados, aguardando sua vez. A vez chega e debulham-se então as espiguinhas de vidas particulares, com muito mais caroço do que sabugo. Acham-se grandes pecadores e nem sabem que são santos. Em vez do confessor vencer-se pelo cansaço e o calor de Canindé, sobem-lhe, na alma, sentimentos de humildade e gratidão. A presença do Deus bom e misericordioso está garantida no mundo, por essa gente. Mais talvez do que por mim, funcionário eclesiástico. Gratidão de poder contemplar tão belas e puras paisagens interiores, cuja atmosfera pouco tem a ver com os maus odores deste mundo envenenado de ganâncias. Gratidão por ter sido colocado, sem merecimento pessoal, no lado de cá, que distribui perdão e não pedradas. O brilho fulgurante no olhar abre janelas para o que se esconde de mais precioso, no coração humano. Dez dias de confessionário em Canindé deixam claro, por que Jesus colocou-se no lado contrário ao dos apedrejadores.
SÃO FRANCISCO LEMBRA SEU FILHO SANTO ANTÔNIO - Mudemos de São Francisco do Canindé para Santo Antônio de Pádua. Nosso Santo Antônio, franciscanamente radical na vivência da pobreza evangélica, tem sido usado historicamente, no Brasil, como patrono da propriedade particular. Infelizmente não da propriedade como direito e precisão de todos. Mas da posse egoísta e concentradora do mundo, como entendida e vivida na iniqüidade social brasileira. As igrejas franciscanas, nas terças-feiras, se enchem de bem sucedidos devotos e devotas, solicitando garantias celestes. Nos tempos coloniais, Santo Antônio convertia o coração e trazia, de volta ao dono, o escravo negro que fugia da escravidão, cometendo, com a fuga, o pecado de espoliar o proprietário de sua propriedade. É o que relata Frei Jaboatão, historiador autorizado daqueles nossos tempos remotos.
O DONO DO ESCRAVO VALEU-SE DE SANTO ANTÔNIO – Eis um fato ilustrador, contado por Frei Jaboatão, em sua CRÔNICA DA PROVÍNCIA FRANCISCANA NO BRASIL: - “Não deixaremos de repetir um milagre de nosso Santo Antônio, em benefício de seus devotos. Fugiu ao Coronel Domingos Dias Coelho, morador nos distritos dessa cidade de Ceregipe del Rei, um preto escravo seu, levando, em sua companhia, duas pretas escravas de outros senhores. Com estas foi arranchar-se nos centros dos sertões de Jacoca, aonde viveu alguns anos fora de todo o convívio de outra gente. Valeu-se o senhor, depois de outras diligências sem efeito, dos poderes de Santo Antônio”.
“NEGRO, VAI-TE DAQUI!” - Continua nosso Frei Jaboatão: - “Eis então que apareceu ao negro um frade, lá nesse recôndito em que se achava e, com voz repreensiva, lhe pergunta: - “Negro, que fazes aqui?” Respondeu ele que estava ali, por não se atrever a voltar para o serviço do senhor, que não o deixava descansar!” – “Seja assim ou não”, disse o frade, “vai-te embora daqui!” E enquanto o negro não se pôs a caminho, o frade não o largou, pondo-se-lhe sempre adiante e repetindo: - “Negro, vai-te daqui!” Veio enfim o negro e o frade adiante dele, até a casa do homem, de quem era uma das pretas, que entregou. E detendo-se ali algum tempo, foi aviso ao capitão-de-campo, que prendeu o negro e o entregou ao seu senhor, como também a outra negra a quem ela pertencia, fazendo Santo Antônio este benefício ao seu devoto”.
SANTO PATROCINANDO A ESCRAVATURA – Desse relato se percebe bem, como o pobre e despojado Santo Antônio foi instrumentalizado, a serviço dos senhores de escravos. Era venerado como santo protetor dos capitães-de-mato, funcionários militares encarregados de caçar e trazer de volta os escravos fugidos. No relato do historiador Frei Jaboatão, perante o sofrimento do pobre escravo, sob o “serviço do senhor que não o deixava descansar”, nenhuma palavra de compreensão. Apenas são colocadas, nos lábios de Santo Antônio, palavras ríspidas, pejadas de racismo: - “Negro, vai-te embora daqui!” Nosso Santo Antônio, com sua autoridade celeste, manda o escravo arrepender-se do “pecado” de fugir da escravidão. Com autoridade moral de santo, ordena ao escravo libertado retornar ao cativeiro. Santo Antônio usado, a fim de patrocinar a causa do proprietário, contra o interesse do esbulhado pelo proprietário.
NOSSO DINHEIRO, O COFRE DO NOSSO CORAÇÃO – Os interesses são tão essenciais, que se entranham, se misturam e se confundem com o que proclamamos retoricamente como o mais sagrado na vida humana: os sentimentos religiosos. Daí, em relações religiosas não convertidas, Deus não passa frequentemente de pseudônimo da ganância. É velho como os Evangelhos, que nosso coração mora lá onde se encontra nosso tesouro. O erro talvez não se encontre no reconhecimento da importância fundamental das coisas materiais. Mas está, com certeza, na distribuição perversamente desigual, dos bens necessários à vida de todos. Repartição perversa, imposta através de ordem social que, de maneira blasfema, avalizamos em nome de Deus; e buscamos garantir, com ajuda dos santos.
IDOLATRIA, O GRANDE PECADO – Em tal faixa sombria dos nossos porões, as propriedades materiais terminam sendo o deus verdadeiro que adoramos, o santo de nossa veneração maior. Usam-se Deus e os santos, como patuás protetores das posses, sustentáculos de objetivos que pouco têm a ver com o Projeto de Deus. Nos tempos coloniais, fazer voltar ao dono o escravo fujão; hoje, garantir bom êxito em empreendimentos que pouco têm a ver com Deus e os santos. Eles se tornaram santos exatamente pela distância que guardaram de tudo aquilo, para cuja conquista e acumulação nós os invocamos. Outubro, mês franciscano, tempo cearense de romarias a São Francisco do Canindé. Mês apropriado para lembrar que São Francisco e Santo Antônio se tornaram o que são, pelo desprezo dos ídolos que costumamos adorar. Adoramos o que eles desprezaram e os invocamos, para que nos ajudem a ter sucesso, na conquista daquilo que eles desprezaram.
O BRILHO DAQUELES OLHOS – Tudo acaba, até as filas nos confessionários de Canindé. Na proximidade, mais nenhum romeiro. Os colegas já se levantaram e se foram. Lá vou eu também, o tempo já escurecendo. Boto os pés na rua, para regressar ao convento. Na frente da casa paroquial, mais um indefectível caminhão de romeiros, enchendo o mundo de “cheio de amor!” Quando ia passando, escutei voz feminina, gritando de cima do pau-de-arara: - “Olha ali o padre que me confessou!” Olhei também e identifiquei a mulher, sorrindo angelicalmente, com os olhos humildes mais agradecidos que eu já vi. Talvez fosse ela que devesse me confessar!
Com a amizade de sempre. - Luís.
sexta-feira, 12 de outubro de 2007
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