domingo, 23 de setembro de 2007

PECADOR QUE NÃO TEVE MEDO DA MORTE

A OUTRA ZONA DO CARTEIRO – Meu amigo Audifax Rios, artista e poeta querido de todos os santanenses, em uma de suas irreverentes e humanas historietas, relembra o seguinte: - “O velho DCT (Departamento de Correios e Telégrafos) ao tempo do Morse, era um monstruoso cabide de empregos petebistas, fomentador de cachaceiros juramentados: os carteiros que, via de regra, extraviavam correspondências e afanavam os cartões e selos estrangeiros para os filhos colecionadores. No interior, havia outra nação de biriteiros que não os estafetas, os guarda-fios, chamados a trabalhar apenas quando rompiam as linhas de transmissão no meio da mata. Matavam o resto do tempo nos pés de balcão, onde relatavam repetidas e inverossímeis façanhas; pedaços da vida, perambulados em agências de remotas comunidades sertanejas”.

TRANSFERIDO DA ZONA POSTAL PARA A ZONA DE MERETRÍCIO - “Quando a autarquia virou empresa regida pela CLT, foi um deus-nos-acuda. Aposentaram, encostaram, transferiram funcionários ociosos e as cartas agora eram entregues por guapos jovens, de bom tutano nas pernas. Que fazer então com os antigos carteiros, que tinham direito à estabilidade? Lotaram-nos em comunidades da periferia, de pouca freqüência, sem correspondência urgente. Possidônio, aí pelo quarto de século a entregar cartas de amor, cobranças e notícias de parentes distantes, teve sorteada, como zona postal de sua responsabilidade, outra zona de sua bem-querença: o Farol do Mucuripe. Saía do velho prédio central às nove horas com as cartas no sovaco; quando dava dez, estava de volta na Praça do Ferreira, já com umas tantas na cabeça, para continuar o calvário, ali pelo Peixe Frito, até as duas da tarde, quando encerrava o expediente. Na maioria dos dias, nem marcava presença no Farol. Inquirido pelos amigos por que não tinha ido trabalhar, vinha sempre com a mesma resposta: - “E tu já viu puta receber carta?”

ARRAIA MIÚDA AO REDOR DA LIXEIRA - Até aqui Audifax, agora eu. Acrescida sem parar pelo descarrego permanente das caçambas, a lixeira se alastrava. A sub-humanidade freqüentadora também não parava de crescer, composta de seres maltrapilhos que, no lixo, catavam redenção. O centro da cidade e a lixeira formavam os dois pólos da população. Ao redor da igreja-matriz, estabeleceu-se historicamente a classe abastada, a pequena proporção dos proprietários das terras, do gado e do comércio. Nas trevas exteriores formigava a arraia miúda, enfiada em seus casebres. De lá acorriam os mineradores da lixeira, para concorrer, com porcos e urubus, pelo que do lixo se podia aproveitar. A matriz ao longe apontava para o céu, na indiferença rotineira que lhe dedicavam em redor os satisfeitos consigo mesmos. – “Tudo é passageiro e sem importância”, escutavam indiferentes os abastados na missa dominical. – “Tudo é passageiro e sem importância”, ecoava ao longe a pregação fatalista, em cima dos esmolambados.

O DIA EM QUE A LIXEIRA PEGOU FOGO – Antes desse dia, a lixeira cresceu, virou pequena montanha mal cheirosa, atraindo mais garimpeiros. Aumentou também a quantidade de porcos e urubus, para concorrer pelos restos apodrecidos. Crianças encardidas se ajuntavam em roda barulhenta, quando se desentocava alguma boneca estripada. O que, porém, fazia os olhos brilhar eram as sobras ensacadas de restos de comida, oferecendo-se como hóstia para a eucaristia da miséria. Evitavam-se incinerações, para não torrar os mineradores. Por isso a lixeira se espichava sobre o cascalho da capoeira. Mas, certa ocasião, o lixo pegou fogo e ardeu dias seguidos, afugentando os convivas da dieta. Semanas após o incêndio, quem parasse no asseado patamar da igreja avistava, ao longe, a coluna de fumaça negra, chegando mais perto do céu do que as torres da matriz. Da porta de seus casebres,. os pobres contemplavam o céu esfumaçado e indiferente às retóricas misseiras.

DEBAIXO DA CINZA UMA GOLDA AMARELADA - Na vida tudo passa, também as coisas ruins. O fogo que começa é também o fogo que se apaga. O mesmo sucedeu com a coivara da lixeira santanense. A fumaça diminuiu e o chão esfriou. A horda encardida e magricela retornou para ver os estragos. Os refugos calcinados da cidade pareciam agora superfície lunar coberta de cinza. Sem nada melhor a fazer, a turma enfrentou a raspagem sistemática do imenso cinzeiro. Foi quando a parábola se realizou. Sob os detritos ardentes, o pedregulho do tabuleiro se derretera em grossa camada de ouro. O pretenso proprietário, claro, logo apareceu para cercar o terreno, com muitas carreiras de arame farpado.. Mas isto é outra parábola; a nossa refere-se a riquezas escondidas em chão de lixeira. É preciso o lixo incendiar, para o fogo separar o ouro do barro.

MEU IRMÃO SÃO POSSIDÔNIO –Conheci o Possidônio de perto. Nunca lhe deram muito valor em vida. Era do tipo a quem quase todo mundo se acha superior. Visível nele era mesmo o lixo da superfície. Viveu a vida toda, enclausurado em adolescência inconclusa. Meninão de cabelos brancos! No começo da vida, saiu da casa paterna e meteu a cara no mundo. Em minha parábola, o Pai mandou buscá-lo à força. Possidônio regressou ao lar em cadeira-de-rodas. Após tanta birita na Praça do Ferreira e tanta carta bem ou mal entregue no Farol, eis agora Possidônio retornado às origens, crucificado, como o bom ladrão, por câncer terminal. Seu lixo pegou fogo e o que se ocultava sob a cinza era ouro dos bons. No ouro de Possidônio, escondia-se jóia preciosa e rara: tranqüilo destemor diante da morte. Como se anjos travessos o convidassem a “botar rabo” em jumentos falecidos, nos prados do purgatório, tal qual ele gostava de aprontar, nos prados da Canafista. A conclusão da parábola todos hão de aprovar: não há valentia maior nesta vida do que aceitar morrer sem apavoramento. Houve papas, bispos e padres que morreram aos prantos. Descobriram alarmados que a vida eterna, que tão bem pregaram aos outros, era para eles também.

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