segunda-feira, 24 de setembro de 2007

PAVORES RELIGIOSOS NA SANTANA DE OUTRORA

“NA VOLTA EU TE PEGO DE JEITO!” – Na Santana dos velhos tempos, pai catolicão, conhecido pela severidade doméstica e pelo medo que os filhos tinham dele, mandou o de oito anos, após o café da manhã, comprar um quilo de carne para o almoço. No caminho do Mercado, à sombra de um benjamim da Praça da Avenida, o caminhão do Filipe estava no prego e os mecânicos faziam a festa. O menino curioso e interessado esqueceu o mandado paterno e refestelou-se no meio fio, envolvido no festival de chaves, porcas e arruelas. O caminhão enguiçara justamente no caminho implacável do pai para o trabalho. Ele avistou seu moleque embebido nas mecânicas azeitadas com palavrões e discretamente ciciou-lhe aos ouvidos apavorados: - “Volte já para casa e ao meio dia, na hora do almoço, verás a surra que te darei!”A alma do menino passou a manhã no vestíbulo do inferno, aguardando o meio-dia. Em tais circunstâncias, o tempo passa ligeiro e logo chegou a hora dos seis bolos pesos pesados em cada uma das mãozinhas tenras. Pai que se preza cumpre o que diz, para educar os filhos! Psicologia, melhor que catequeses simplórias, sabe que nossa imagem de Deus é formada pela imagem que temos de nossos pais, sobretudo do nosso pai!

PAVORES RELIGIOSOS NA SANTANA DE OUTRORA - Badaladas pungentes dobram em finados, no calor vespertino daquele domingo, inundando de macabros clangores a tristeza permanente da cidadezinha sertaneja. O cortejo fúnebre de gente do Alto da Liberdade desponta no beco do Sobrado, em direção à matriz. O pai de família morrera tuberculoso. A existência de mais um santanense acabara de preencher os objetivos de sua vinda ao mundo: levar vida escassa, driblar a presença ameaçadora de Deus, morrer e apresentar-se sem advogado ao temível Juiz. Na igreja, rescendendo a flores murchas e suores mal lavados, Padre Arakém, enrolado na capa lúgubre dos enterros, procedeu à encomendação, engrolando latinório que ele mesmo não entendia. Respingos finais de água benta e a procissão funerária, encardida e mal cheirosa, arrastou o esquife para o buraco no distante cemitério. Naquela tarde, o silêncio absoluto e sem esperança do cemitério só era quebrado pelo mau humor dos coveiros e pelo farfalhar do vento, na palha das carnaubeiras. Na cena católica, nada parecido com ressurreição e vida eterna, só rostos crestados e olhos mortiços. Naquele domingo de enterro, as portas se trancaram ainda mais cedo. Medo de alma, medo de Deus!

APERITIVOS DE FOGO ETERNO – Mas era domingo na paróquia e à encomendação do falecido seguiu-se a Bênção do Santíssimo, com muitas velas acesas, turíbulo fumegante e Padre Arakém agora envolvido na capa magna da cor de ouro. Bancadas cheias de fiéis piedosos e de cidadãos e cidadãs carentes de vida social. Senhores católicos e mulheres pias largavam as rotinas caseiras e encheram os bancos, para escutar o sermão e receber a bênção divina. A pregação mal costurada discorreu sobre a presença ameaçante de Deus e sobre a certeza inescapável de seus castigos. Medo era o sentimento diuturnamente inoculado nas almas. Era preciso enterrar fundo o “temor do Senhor”, pois só com medo as pessoas procedem direito e se salvam. Ou você cai de quatro ou sua alma estará destinada às chamas que não se apagam. Pavor dava a impressão de ser o Grande Mandamento da Lei de Deus. As brasas ardentes do turíbulo serviam aperitivos de fogo eterno. Como posto vende gasolina, a igreja abastecia a comunidade de intimidações. Era preciso aterrorizar, para as almas não se perderem. Santanenses mais velhos passaram por isso. Os mais espertos dobraram a esquina.

DEUS ESCONDIDO ATRÁS DAS PORTAS - Na tardinha mormacenta daquele domingo paroquial, o garoto curioso das porcas e arruelas abriu, a cotoveladas e mãos inchadas, espaço entre a meninada; e sentou-se também, no batente de mármore branco da capela-mor. De lá acompanhou e Bênção do Santíssimo no meio do empurra-empurra. Viu antes o enterro da janela de casa; a seguir cumpriu a imposição paterna da Bênção do Santíssimo, recapitulando os sagrados medos no sermão do padre. Finalmente partiu para o cuscuz nosso de todas as noites. Do enterro, do sermão e da Bênção, levou para casa a confusa impressão do Deus invisível, escondido atrás das portas, na escuridão da noite, lápis e papel na mão, tomando nota de nossos malfeitos, para a ameaçadora palmatória incandescente. Os tempos eram assim e muito resultado saiu pela culatra dos planejamentos. Filhos criados no pavor religioso foram os primeiros a saltar fora da canoa, quando conquistaram autonomia. Filhos de pais liberais cresceram psiquicamente sadios e tiveram reencontros com a religião de forma não mórbida e deprimente.

MEDO ENDURECE A CASCA DO CAROÇO – Casca endurecida dificulta o surgimento da folhinha que depois será mangueira frondosa. Medo impede a folhinha de botar a cabeça de fora. Medo endurece a casca de todos nós, criados por Deus como sementes de personalidades sadias e felizes. Tudo o que é vivo cresce de dentro para fora. Tudo o que é morto cresce de fora para dentro. Pedagogias equivocadas pretendem construir a personalidade de filhos e paroquianos de fora para dentro: injetando medo e endurecendo a casca da semente. Acham imbecilmente que prestam bom serviço. O que o medo consegue é produzir refinados mentirosos. Pois medo é pai da mentira e mentira é, muitas vezes, mecanismo de defesa do oprimido contra opressores. Pessoas mentirosas são filhas de pais ameaçadores. Como no MÁGICO DE OZ, somos amedrontados por forças ocultas, movidas por espertalhões profissionais do autoritarismo. Eles faturam em cima de temores e covardias. Composta de pecadores, a Igreja meteu, com freqüência, os pés pelas mãos. Achou mais fácil encher vasos com rosas de plástico inanimadas, passivas e inodoras do que, com a graça de Deus, empapar o chão e deixar o mundo florir.

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