sábado, 23 de fevereiro de 2008
EXAME DE CONSCIÊNCIA TREPADO EM PALMEIRA AFRICANA
“NÃO EXISTE ABJEÇÃO SEMELHANTE À MINHA ABJEÇÃO” - O Continente Africano, de saudosa memória para a “elite branca” brasileira, bem podia fazer, das LAMENTAÇÕES DO PROFETA JEREMIAS, proclamadas liturgicamente na Semana Santa, o seu hino nacional de comunicação com o resto do mundo. E também de denúncia indignada do que o colonialismo europeu perpetrou em seus países. A África aparece, nos meios de comunicação, como imenso depósito de todas as desgraças humanas. A televisão mundial fatura bilhões em documentários da vida animal africana e com safáris de miliardários brancos, em suas reservas. Você sabia que os negros nativos estão geralmente proibidos de entrar nas reservas, para que não identifiquem sua fome crônica com a vontade de comer os animais selvagens?
REVOLUÇÕES DE LIBERTAÇÃO NACIONAL – Décadas atrás, sucederam as chamadas revoluções de libertação nacional. O colonialismo europeu entranhado foi posto portas afora, na mais clara consciência nativista e, não raro, com a violência reprimida durante séculos, por populações que não apenas sofreram o estigma humilhante da escravidão, mas foi obrigada a introjetar a inferioridade e a desvalia. Várias sociedades africanas optaram pelo socialismo marxista, do tipo estalinista. Dele caíram vítimas também as igrejas cristãs, representadas por missionários brancos, importados dos países imperialistas de origem: - “O catolicismo conviveu e cooperou com a opressão, por isso agora pau nele!” – Assim pensaram e reagiram muitos africanos “libertados”.
PROVÍNCIA DE SANTO ANTÔNIO PRESENTE Á EFEMÉRIDE – Dois colegas franciscanos de nossa Província viram tudo aquilo mais de perto: Frei Alfredo Schnuettgen, o Pifcke, e Frei Albano Pereira Nóbrega, o Desbravador. Durante décadas anteriores, Frei Alfredo tornara-se “apóstolo” dos pescadores pobres, espalhados e politicamente dispersos, pelas praias do Nordeste. A esse título, tornou-se nacionalmente conhecido e admirado. Era soldado valente da justiça social. Personalidade monobloco, sem curvas e sem meandros, achou que a justiça encontrara finalmente seus trilhos políticos, nas revoluções libertárias dos países africanos. Desejou ver isso de perto, participar na alegria dos libertados. Viveu temporada na revolucionária Guiné-Bissau, ex-colônia portuguesa, agora independente e marxista.
A ABOMINAÇÃO DA DESOLAÇÃO – Nosso bem intencionado confrade nunca teria visto tanta miséria, tanta desigualdade e tanta arrogância burocrática. Em nome da igualdade socialista. Nunca vira também tanta má vontade dos burocratas, frente à presença dos missionários católicos. Tendo sido a vida inteira “verdadeiro israelita”, a decepção do nosso Pifcke foi tamanha que, na volta ao Brasil, morreu de tristeza, junto com suas esperanças de sociedade fraterna. O desencanto minou-lhe a resistência contra os “bacilos Africae”. Em primeiro momento de fé juvenil, achou inocentemente que o socialismo revolucionário seria a implantação, através da política, dos objetivos do Evangelho.
NOSSO “CANGACEIRO”VIAJOU VACINADO – Frei Albano, de espírito inquieto e radar sempre ligado, ofereceu generosamente alguns anos de sua vida pastoral a um bispo franciscano da África. Diz ele que por penitência e reparação, pelos séculos de escravização de africanos no Brasil. Generosidade que bem corresponde ao ânimo desbravador do nosso “cangaceiro” da Paraíba. Sou amigo admirador de Frei Albano. Em seu retorno da temporada em Guiné-Bissau, passou dias conosco, em Nova Iguaçu. Pude então conversar, fazer perguntas e matar curiosidades revolucionárias. De antemão, sei que política não se identifica com Evangelho. Nenhuma ideologia é capaz de transformar a face da terra. Essa tarefa pertence ao Espírito de Deus, que age pelos seus portadores. Passado na casca do alho, nosso Frei Albano sabia que não viajava para o Jardim do Éden, com acesso, desde o infausto Dia, vetado às aproximações meramente humanas.
VISÕES OPOSTAS E IRRECONCILIÁVEIS DE IGREJA – Não gravei o que conversamos e as opiniões e observações de Frei Albano vão aqui de memória. Albano descobriu, in loco, a necessidade que as igrejas têm de nutrir profundo respeito pelas diversas culturas dos povos, aos quais anuncia a Boa Nova. Me lembro de uma frase sua: “Para africanizar-se, não basta identificar a renovação eclesial com a introdução dos nativos batendo pandeiro na liturgia”. Sobre a nova situação da Igreja em países tradicionalmente oprimidos e explorados, agora construindo e vivendo sua independência, nosso confrade acha o seguinte: “Existem atualmente, entre os fiéis e entre os próprios padres, duas visões da Igreja, da missão, do missionário e da própria fé. Visões opostas e irreconciliáveis! De visões opostas e irreconciliáveis, derivam atitudes também opostas e alinhamentos cristãos antagônicos dos missionários, que ajustam sua própria vida e seu trabalho de maneiras diferentes à nova situação”.
“NO PASSADO NÃO ESTÁVAMOS COM O POVO” – Continuo perseguindo a memória das conversas com Frei Albano, retornado da África. Conforme o confrade corajoso, há tolerância entre as duas tendências contraditórias. Isso lhes permite a coexistência, mas infelizmente não a convergência. Exemplos: “Em Moçambique um grupo de freiras consegue ver benefícios na situação política, que espoliou a Igreja de todos os seus privilégios. Elas compreendem agora que não deveriam considerar-se donas: nem do hospital, nem das escolas, nem de qualquer outro serviço prestado ao povo. A revolução política as ajudou a se destacarem das estruturas em que viviam e que, aos olhos do povo, apareciam como riqueza e conforto. Reconheceram que, no passado, não estavam “com” o povo. Hoje moram em casas mais simples, mas afirmam que são mais felizes e mais livres. Assumem, como seu dever, continuar em Moçambique, até quando for possível. Porque o povo ainda está sofrendo e é preciso ajudar as pessoas a verem claramente e serem críticas. A revolução desmitizou as santas freirinhas!”
“HOUVE O ECLIPSE E O SOL APAGOU-SE” - Em Angola, a mesma realidade é interpretada diferentemente por um missionário capuchinho europeu. Ele lamenta a perda das escolas, tipografias, carpintarias, internatos, as construções da nova missão. Tudo foi nacionalizado e a população só pôde responder com o silêncio. Para este servo de Deus, houve um eclipse no céu, mas não um eclipse permanente. “Basta esperar, que eles vão nos procurar de novo! De qualquer maneira, valha como consolo que tudo pode ser entendido como vontade de Deus!” Conforme o missionário, os sofrimentos do passado são menos dolorosos do que as angústias e incertezas do presente. “O pessoal precisa sofrer, a fim de descobrir que era feliz e não sabia! A segurança do passado ainda há de voltar!”
IGREJA DESINSTALADA COMO O MESTRE – Duas mentalidades, duas visões, duas práticas opostas. O que é importante para uns é desgraça para outros. Perda para uns é ganho para outros. No primeiro caso, transparece a satisfação, porque a realidade espoliou, tornou pobres, deu a possibilidade de refletir e de aceitar a pobreza: a incerteza de não ser dono da casa, ser tratado como os outros, descobrir o sentido do provisório, mudar atitude e estilo de vida, ser desmitizado, dar o primeiro lugar à justiça, à participação, à vida dos outros homens, às alegrias e aos sofrimentos, quer no trabalho, quer na vida política. Trabalhar não mais “para” os outros mas “com” os outros. O que torna possível aceitar, com alegria, tal realidade é a consciência de que tudo isso constitui a verdadeira e permanente situação em que a Igreja deveria viver, para ser cada vez mais semelhante ao Mestre.
IGREJA IDENTIFICADA COM OS MANDANTES E PROPRIETÁRIOS – Já a segunda interpretação revela uma Igreja que se recorda com saudade do tempo passado, que se angustia por ter perdido os bens, que se perturba perante o presente sombrio esperando que passe, que tem somente uma vaga esperança para o futuro. Considera o novo regime como eclipse que há de passar, e identifica a Igreja, organizada e proprietária de bens e de obras sociais, com o próprio Deus que, uma vez revelado, sempre fica e vence. Esta é uma Igreja que se fecha em seu desdém de usurpada e na secreta satisfação, em constatar que a população só pode reagir com o silêncio. Pois é, tudo isso ensina que libertação tem de ser também para o homem religioso e para as igrejas, incluindo a nossa.
DESAUTORIZO A MENSAGEM DESAUTORIZANDO O MENSAGEIRO – Leitores virtuosos sugerem, não sem razão, exame de consciência, como acesso ao direito de “anunciar”. Apontam possíveis contradições entre o que se vive e o que se prega. Identificam autoridade da “profecia” com integridade do “profeta”. Nossas reflexões os ajudem na mesma direção. Mas sem atropelar estrutura fundamental, recorrente na História da Salvação: a figura do “wounded healer”, o Médico ferido, “por cujas chagas fomos todos curados”. Nas comunidades de nossa Província, comentava-se bem humorado que os frades se dividem entre os “confessores” e os “mártires”. Os “mártires” são aqueles obrigados a conviver com os “confessores”. Estes encarregavam-se, às vezes em tempo integral, de fazer o “exame de consciência” dos martirizados confrades, que com eles precisavam conviver.
RETORNO AO SOFRIDO CONTINENTE AFRICANO – E aproximação a certa palmeira, na beira do Nilo. Lá em cima dela, encarapita-se apavorado macaquinho. Embaixo, guardando o tronco, monstruoso crocodilo exaspera-se indignado, porque o macaquinho reluta em descer e entregar-se. Como se macaco fosse carne de primeira! Desconfio que a estorieta não foge ao nosso assunto! Aproxima-se a Semana Santa, com a grande Sexta Feira, dia do Calvário e da Cruz. Dia também do primeiro Santo explicitamente canonizado. Não pelo Papa, mas pelo próprio Jesus. O primeiro ser humano a, com toda certeza, ter entrado no Paraíso, como primícia nupcial do Sangue redentor. O ser humano a quem chamamos eufemisticamente de Bom Ladrão, que de bom deve ter feito pouca coisa, em sua vida bandoleira. Na hora da graça, prevaleceu a misericórdia e não pretensas integridades pessoais. Concluo com relembrança aparentemente dispersa, mas que também pode ter algo a ver com o assunto. Meu amigo iguaçuano Nestor Figueiroa não tem nenhum dente na boca. Usa prótese total superior e inferior e foi dos dentistas mais competentes e dedicados que conheci. – Mas já é hora de terminar as considerações, com os melhores desejos de Páscoa!
Com amizade, quebrando cabeça para enxergar melhor na escuridão - Luís
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