CRIANÇAS MAGRELAS, BEZERROS ROLIÇOS – As voltas da vida levaram a demorar-me em cidadezinha no norte de Minas. Região preponderantemente pastoril, as terras todas pertenciam a meia dúzia de famílias. O grosso da população tinha duas possibilidades de sobrevivência: como “servos da gleba” ou como ociosos forçados. Não precisa ser inteligente para imaginar os frutos sociais bichados de tal desigualdade: pais de família afogando a desesperança no alcoolismo; mendicância generalizada; prostituição começando na adolescência; crianças, com latinha velha de goiabada na mão, pedindo esmola na beira da Rio-Bahia. Não longe delas, atrás do arame farpado, bezerros bem nutridos e luzidios, certamente vacinados, medicados, bem cuidados. Veio-me à cabeça pensamento irreverente: por que, na bela matriz da paróquia, não se batizam os bezerros, em vez destas crianças?
PULANDO DO MICROCOSMO PARA O MACROCOSMO – Um dos nossos semanários, em reportagem sobre a violência brasileira, traz as seguintes chamadas: “As capitais brasileiras são campeãs mundiais de assassinato”. “Há mais seguranças particulares em atividade do que policiais”. “Um em cada cinco jovens brasileiros já viu o corpo de alguém que morreu assassinado”. “De cada 100 crimes, só dois são desvendados”. “A classe média está blindando carro em consórcio a mil reais por mês”. “Uma pessoa é morta a cada 13 minutos no país”. Embaixo das chamadas, a palavra SOCORRO! Em letras garrafais. Pelos dados oficiais, que geralmente exageram para baixo, ocorrem 40 mil assassinatos por ano no país, mais do que a soma total dos assassinatos ocorridos anualmente nos Estados Unidos, Canadá, Itália, Portugal, Inglaterra, Áustria e Alemanha todos juntos. Repita-se: há mais homicídios no Brasil que em todos esses países somados. Eis os subprodutos de sociedade profundamente injusta.
RELIGIÕES FUNCIONANDO A TODO VAPOR – Tal cemitério social é adornado com as milhares de torres, sinos e alto falantes, celebrando o nome de Deus em todos os tons dos alheiamentos e contradições. Ainda mais sério: a celebração histórica do nome de Deus tem servido exatamente para aprovar a ordem imposta pelos responsáveis e para encarcerar as vítimas sociais, na consciência alienada de que Deus nada tem a ver com isso. E tome missa e tome culto e tome Bíblia, em meio à hecatombe! As igrejas funcionando em exemplar fidelidade às suas burocracias, badalando o lado espiritual de nossas existências. Do outro lado, dentro da história real, o rebanho sendo dizimado pelas dezenas de milhares de assassinatos anuais, verdadeiro genocídio de pobres matando pobres; e, silenciosamente, em mortandade talvez mais abundante, exterminados pela miséria, bem faturada e catolicamente bem digerida, por seus beneficiários batizados.
CATOLICISMO PODE NÃO SER IGUAL A CRISTIANISMO – Nos tempos pré-cristãos do Império Romano, o paganismo era a religião oficial e o cristianismo era a religião escondida e clandestina. No contexto histórico da vida de Jesus, o sacerdotismo burocrático do Templo representava a religião oficial e os pobres, que não tinham como pagar as espórtulas, exigidas pelo resgate ritual da pureza legal, vegetavam física e religiosamente, nas margens farpadas, que os segregavam dos puros e santos. Jesus preferiu a companhia desses últimos e, pelos homens do Templo, foi preso, torturado e destruído, como os marginalizados sociais de hoje, listados na reportagem. Na rabeira mundial da qualidade de vida e iniqüidade distributiva, a sociedade brasileira é muito religiosa e pouco cristã. Muita religiosidade e pouco cristianismo, concordas?
RELIGIÃO COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO – No mundo por onde peregrinou e lutou o povo bíblico, a religião era o seguinte: Havia muitos deuses. O Deus Supremo era o deus do faraó. Os deuses inferiores eram os deuses mais fracos das cidades de Canaã. O céu era o espelho do que se passava na terra. A hierarquia entre os deuses legitimava a sociedade dividida em classes. A aristocracia dominava os agricultores explorados. Nessa religião, os intérpretes dos deuses, os sacerdotes, eram latifundiários e ricos. A eles convinha que o sistema não mudasse. O culto era monopolizado pelos sacerdotes e o saber era monopolizado pela aristocracia, que mantinha o povo na ignorância. No culto, eram recitados os “mitos da criação”, que confirmavam a situação: assim como o mundo um dia foi criado, assim sempre haverá de ser. Querer mudar alguma coisa era o mesmo que revoltar-se contra os deuses.
O QUE OS UNIA ERA A OPRESSÃO – Esta era a situação econômica, social, política e religiosa do povo, no tempo em que Abraão andava pela Palestina e em que Moisés atuava no Egito. Não havia muita diferença entre a Palestina e o Egito. Em ambos os países, vivia um povo oprimido, despedaçado por séculos de exploração. Não era uma raça. Era gente marginalizada, perdida, desligada de suas tradições, vinda das raças, povos e tribos os mais diversos. O que unia o povo não era a raça nem o sangue, mas a opressão, o desejo de ter uma terra que fosse sua e a vontade de ter uma vida mais abençoada. Dessa mistura de gente pisada e marginalizada, parecida com as crianças magrelas e os pais pobres destruídos do Nordeste brasileiro, é que vai nascer um povo, o Povo de Deus, cuja história é narrada na Bíblia. Tudo igual à História do Brasil! Inclusive os apelos divinos, para este Povo acordar dos alheiamentos, unir-se e organizar-se contra a opressão.
Com amizade rezando, nessa Quaresma, para que cessemos a blasfêmia de identificar a Ação transformadora necessária do Espírito de Deus, com humanas, frágeis e imperfeitas propostas ideológicas - Luís
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008
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