sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

FAMÍLIA, POSSÍVEL TRINCHEIRA DE EGOÍSMOS

FAMÍLIA DE NORDESTINOS NA BAIXADA FLUMINENSE - Época natalina festeja também a Sagrada Família. Família certamente semelhante, em muita coisa, a tantas famílias nordestinas desenraizadas, que conheci na Baixada Fluminense. Qual teria sido o dia-a-dia na família de José, Maria e Jesus? O que eles conversavam à mesa? Quais os ideais terrenos que guardavam no coração? Como se relacionavam com os problemas sociais de seu povo? Como Maria educava o filho? Com que olhos o olhava, quando lhe dava de mamar? Que orientações lhe transmitiu, quando o garoto virou adolescente? Igual às outras mães, que futuro brilhante sonhou para o rebento? O que pensavam ela e José, contemplando o infante misterioso? Como José o via na oficina, quando lhe ensinava carpintaria? Quais os projetos familiares acalentados? Como eram as relações das três pessoas entre si? Como interagiam com as crenças, com a fé religiosa do seu povo? Em que nível da escala social eles se colocariam hoje? O que diferencia, essencial e agressivamente, a família de Jesus dos sonhos e ambições da maioria de nossas famílias? Famílias, pelo batismo, formalmente comprometidas com o Projeto cristão?

O MUNDO DOS BRASILEIROS RICOS – Em ampla reportagem, semanas atrás, um semanário dissecou a intimidade das famílias brasileiras muito ricas. A vida dessas famílias, conforme a revista, é um mundo que, em sua porção mais exclusiva, é cercado por altos muros, carros blindados, seguranças parrudos e mistério, no que se refere a cifras. O lugar comum, ainda conforme a revista, recita que,em país tão pobre como o Brasil, a existência de gente rica demais constitui um absurdo em si. Não por acaso, os brasileiros aprendem, muito cedo, que “dinheiro é coisa suja” e que, ao referir-se a um endinheirado, dizem que ele é “podre de rico”. Tais expressões sintetizam os vícios, no processo de acumulação brasileira. Na época da colônia, era a cobiça pura e simples que motivava os que aqui comercializavam ouro e traficavam escravos. No Império, enriquecer significava fruir as benesses distribuídas pela corte. Na República, o Estado concentrou ainda mais a renda nas mãos de uns poucos privilegiados e, nos seus desvãos, grassou a ladroagem. Roubar, explorar, vender-se, acumpliciar-se, locupletar-se, tais são os verbos que, entre nós, têm rimado com muito dinheiro.

O MAIS VELHO HERDAVA O PADROADO - No Brasil colonial, a escola era só para os senhores. Durante os três séculos do Brasil-Colônia, o ensino existiu unicamente em função da aristocracia rural. Salvo as raríssimas exceções, que não bastam para invalidar o quadro, só os filhos dos senhores de engenho, grandes plantadores e fazendeiros sentavam-se nos bancos escolares. Um historiador assim descreveu, de forma esquemática, o sistema educativo desse período: independentemente de qualquer consideração com o problema de vocação, os três filhos varões do senhor rural já nasciam com destino marcado. Um deles seria o herdeiro, o novo senhor, o continuador da linhagem e do poder. Sua educação formal resumia-se à aquisição de algumas letras, o bastante apenas para ler uma carta e assinar um recibo.

O TERCEIRO ERA DESTINADO AO SACERDÓCIO – O segundo filho seria “letrado”. Iria para a corte, advogaria, brilharia nas rodas sociais, integraria alguma academia de fazedores de sonetos, exerceria funções públicas ou políticas. Ensinavam-lhe latim, mitologia, metrificação poética, um pouco de gramática. O segundo filho estava destinado a ser dono da cultura, do poder político e evidentemente o retransmissor da ideologia dominante. O terceiro filho estava destinado ao sacerdócio. Competir-lhe-ia o poder sobre as almas, a contenção do rebanho dentro de seus limites, e a educação das novas gerações de senhores, conforme a tradição e o código moral prevalecente. O terceiro filho recebia de herança, da família patriarcal, o poder espiritual, cuja função, na prática, era abençoar a situação elitista, provar que ela estava de acordo com os planos de Deus: e assim prolongá-la o mais possível.

FAMÍLIA PODE TAMBÉM FAZER MUITO MAL – Passado o Natal, celebra-se a Sagrada Família. Na liturgia, o evangelho conta o episódio do Menino Jesus entre os sábios do Templo. Em vez de ficar dependente da mãe e do Pai como toda criança, Jesus afasta-se da família e é encontrado, três dias depois, “cuidando das coisas do Pai”. A missão estava acima do bem-estar da família. Acima da família, existem realidades mais importante. Pois existe a família fechada e a família aberta. Família fechada é aquela que se preocupa exclusivamente consigo mesma e com o bem bom de seus membros. Estando ela bem, pouco importa a sorte dos outros. Família fechada não se interessa pelos problemas da família universal: a humanidade, a sociedade, a comunidade. Em família fechada, os valores transmitidos aos filhos são a concorrência feroz e a superação sem piedade. Exatamente a visão de mundo que torna a convivência uma luta sem alma e sem coração.

FRATERNIDADE BIOLÓGICA É PROVISÓRIA – Ela começa com o nascimento e termina com a morte. Fraternidade igualitária no Pai comum faz com que sejamos todos irmãos para sempre. Não é possível que famílias isoladas arrebatem o monopólio da segurança material e da felicidade, em mundo no qual grande parte das famílias possui míseras condições de sobrevivência. Como sentir-se em paz, quando irmãos estão tomados pela desgraça de não terem sequer o que comer! Nem religiosa nem psicologicamente é possível ser feliz sozinho. Para famílias fechadas, Natal conta belo episódio pastoril, no qual o trancamento poético das famílias egoístas de então impediu que Jesus nascesse no meio delas. Envolvidas em projetos particulares, bateram a porta na cara do casal de pobres, que buscava pousada. E o Fato mais importante da história humana aconteceu longe das famílias de Belém. A Sagrada Família foi escorraçada para a estribaria e as famílias de Belém permaneceram trancadas dentro de seus muros, na cadeia asfixiante das mesquinharias pequeno-burguesas.

FAMÍLIA NEM SEMPRE RIMA COM GENEROSIDADE – Religiosa e antropologicamente, família seria a primeira escola de convivência. O mundo será tanto melhor, quanto melhor for a convivência entre as pessoas. Virtude da convivência é a consciência dos direitos iguais. Na construção da igualdade, a família pode ser o grande bloqueio. Quando isso acontece? Quando a família consangüínea tranca-se nas muralhas de seus interesses e se insensibiliza ante os interesses da grande família, que é a comunidade. Pior ainda: a comunidade serve de presa, para a família fechada fartar-se. Mas não tem jeito: se pioramos o mundo para os outros, pioramos o mundo também para nós. Se acumulamos à custa da violência, seremos também vítimas do mundo violento. O dia da Sagrada Família convida a enxertarmos nossas famílias no tronco da compaixão e da solidariedade, de onde perpassa a seiva das reais virtudes humanas: escolho ser egoísta, árido e vazio; ou escolho ser fraterno, plenificado e feliz. Começo de mudança no processo é um empurrão em nossas estruturas familiares, para cima dos trilhos da justiça fraterna. Em mundo como o nosso de concorrência desalmada, os magros rendimentos da carpintaria não dariam para matricular o Menino Jesus no Christus.

Com amizade – Luis

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