quinta-feira, 24 de janeiro de 2008
DOIS PADRES AGITADORES
- SANDÁLIAS ACOMPANHANDO BOTINAS – Os padres foram chegando nas primeiras caravelas que “descobriram” o Brasil. O projeto ideológico era “dilatar a Fé e o Império”. A Fé ajudava a dilatar o Império. Por isso, junto com os soldados, vinham os religiosos. Atrás das botas do guerreiro seguiam as sandálias do missionário. Foram milhares. O nome da maior parte desapareceu no anonimato da grande ordem católica colonial. Alguns ficaram mais conhecidos. Quem não se lembra dos padres Anchieta e Manoel da Nóbrega? Pois bem, retiramos do anonimato e apresentamos mais dois jesuítas valorosos, dos nossos tempos coloniais: os padres Gonçalo Leite e Miguel Garcia. Vivas entusiasmados para Gonçalo Leite e Miguel Garcia! Por quê?
- REPATRIADO POR DISCORDAR DA ESCRAVIDÃO – Gonçalo Leite foi o primeiro professor de Filosofia no Brasil. Defendeu a tese que nem os negros da África nem os índios do Brasil apresentavam base legal para serem escravizados. Em conseqüência dessa tomada de posição, a permanência de Gonçalo Leite na colônia tornou-se insuportável para os demais padres e moradores. Assim, ele foi “convidado” a voltar ao Reino em 1586, qualificado de “inquieto” pelo Padre Visitador. De Lisboa, escreveu uma carta ao Padre Geral da Companhia de Jesus “contra os homicidas e roubadores da liberdade dos índios no Brasil”: - “Bem se pode persuadir os que vão para o Brasil – escrevia ele – que não vão a salvar almas, mas a condenar as suas”.
- CONFISSÕES LEVIANAS DE ASSASSINOS E LADRÕES – Prossegue o desabafo, na carta do padre Gonçalo Leite: - “Sabe Deus com quanta dor de coração isto escrevo, porque vejo os nossos padres confessar homicidas e roubadores da liberdade, fazenda e suor alheio, sem restituição do passado nem remédio dos males futuros, pois tais crimes da mesma forma todos os dias se cometem”. Padre Gonçalo Leite não aceitou que seu sacerdócio e magistério, suas opções mais fundamentais e generosas, fossem desfrutadas para garantir a escravidão. Elas tinham de ser espinhos na consciência dos que aceitam usar o Nome de Deus, para justificar ordens sociais que nada têm a ver com a ordem fraterna e igualitária, querida por Deus.
- IGREJAS E CONVENTOS CHEIOS DE ESCRAVOS – Miguel Garcia foi o primeiro professor de Teologia em Salvador, entre 1576 e 1582. Juntou-se a Gonçalo Leite contra a escravidão existente no próprio Colégio da Companhia de Jesus. Em sua carta, dirigida ao Padre Geral da Companhia, ele escreve: - “A multidão de escravos que possui a Companhia nesta Província, particularmente neste Colégio, é coisa que, de maneira nenhuma, posso engolir. Sobretudo porque não entra no meu entendimento que estes escravos possam ser licitamente possuídos. Alguma vez me passou pelo pensamento que mais seguramente serviria a Deus e me salvaria no mundo, do que nesta Província, onde vejo as coisas que vejo”.
- DESTERRADO POR INQUIETO E ESCRUPULOSO – A carta do Padre Miguel Garcia despertou grande confusão. Os moralistas e dogmáticos do Reino foram convocados para consulta. Moralistas e dogmáticos eram padres também. Todos eles foram de parecer que poderia haver cativeiros justos. Argumentou-se até com o privilégio desses pagãos selvagens serem escravos de cristãos, que os batizassem e lhes transmitissem a fé verdadeira. Eram escravos, mas estavam com a salvação garantida! Dessa forma, todos se voltaram contra Miguel Garcia que, considerado pelo Visitador como inquieto e escrupuloso demais, foi mandado de volta para Portugal, no dia 25 de julho de 1583.
- TROCA-SE TESTEMUNHO POR APADRINHAÇÃO – Os cristãos dos primeiros séculos, venerados ainda hoje como santos, eram chamados de mártires. Bom número deles povoa nossas jaculatórias e suscita novenas. Ser mártir, na comunidade primitiva, significava dar testemunho do Evangelho de forma radical. Se preciso, ao preço da própria vida. Os mártires testemunhavam o quê? Adesão a Cristo, concretizada na defesa heróica da dignidade divina de todos os homens. Justiça fraterna, como única prova material concreta possível de nossa fé em Deus. Ser mártir era o contrário de ser burocrata. Evita-se burocraticamente o incômodo exemplo que os mártires nos dão. Preferimos que eles,em nome de Deus, apadrinhem nossas vantagens.
- GENEROSIDADES NEUTRALIZADAS PELOS BUROCRATISMOS – Em determinados períodos, prevalecem testemunho martirial ou burocratismos religiosos. Os corpos, também as psiques e mentes, preferem a inércia. Via de regra histórica, a inércia é tanto mais nutrida e furnida, quanto mais alto ela mora. Lá de cima, caem comandos que usam prodigamente generosidades fundamentais de seres humanos, a fim de neutralizar inquietações martiriais, substituindo-as por burocracias religiosas. O sangue valente e heróico dos mártires é trocado pela tinta desonerada dos carimbos. Expatriem-se os profetas, vivam os burocratas, o sossego está garantido!
- IGREJA DE CRISTO, ACONTECIMENTO DIVINO E INSTITUIÇÃO HUMANA – O fato religioso, chamado Igreja, possui variadas significações e aspectos frequentemente antagônicos. Igreja é o Testamento de Jesus e é Sociedade humana, organizada em nome d!Ele. Recebe o carisma de Jesus e possui as limitações de nossa natureza. A Igreja é regida pela Graça, mas também pelos dinamismos mundanos, próprios aos exercícios de poder. Por isso, Igreja é profetismo testemonial e mediania conservadora.Em certos períodos, prevaleceram heroísmo e martírio.Tais períodos coincidiram com crescimento do Povo de Deus e aprofundamento da consciência cristã. Em outros períodos, prevaleceu a mediania conservadora. Valorizou-se então a inércia que não incomoda, mais do que a coragem de ousar o salto no escuro.A fase original produziu os santos de nossas novenas e jaculatórias. A fase posterior sempre tendeu a gerar acomodados burocratas eclesiásticos. Reconhecidos profetas, consagrados pelo Povo de Deus, não fizeram “carreira” na Igreja. Em vez de virarem bispos e cardeais, os dois heróicos jesuítas de nossa história, lembrados na crônica, foram simplesmente mandados embora. Seu profetismo era inaceitável para a “boa ordem” do projeto colonial.
Com amizade - Luís
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