sexta-feira, 30 de novembro de 2007

LÁ EMBAIXO A IGREJA ERAM ELES

PORQUINHOS DE MINHA INFÂNCIA – Quando menino em Santana, ainda não eram cercadas as terras na beira do rio, no lado de cá da ponte. Hoje, arame farpado ao redor delas impede a cidade de expandir-se para o nascente. O que era várzea aberta, povoada de canafisteiras, onde se aninhavam canários, rolinhas e cabeças-de-fita, hoje é só canarana, para engorda do gado. A meninada devassava com gosto aquele chão, para armar alçapões e tomar banho no rio, sob imponente marizeira, que não sei se ainda existe, se foi perversamente cortada, se foi lamentavelmente arrastada rio abaixo, na grande enchente. A frondosa árvore alçava-se ao céu, bem no canto de enorme chiqueiro de porcos. Eram bem uns quarenta porcos! Mais da metade do chiqueiro era tomada por lama, que chegava às costelas dos suínos e aos joelhos dos tratadores. Achava-se então que porco gosta de lama, precisa de lama. Então haja lama para eles: carregava-se água do rio em velhas latas de querosene jacaré, para deixar no ponto, bem pastoso e abundante, o lamaçal da pocilga.

PORCÕES RAPINANDO PORQUINHOS – Hoje sabe-se que porcos, como todos os seres vivos, gostam de água, a fim de refrescar-se do calor. Quanto mais limpa melhor! Por aí afora, em viagens a serviço do ministério presbiteral, observei como os animais, também os porcos, se criam limpinhos. Nunca vêem lama! Vivem forrados por grossa camada de serragem, periodicamente substituída. São criados limpos e sem verminose, sadios e felizes. Mas, quando meninote, eu gostava de apreciar a criação, perto da marizeira, na barranca do Rio Acaraú. Minha curiosidade juvenil coincidia, às vezes, com a chegada do tratador, trazendo comida. Os sacos de milho despertavam animado fuzuê entre os inquilinos. Na hora de avançar, os porções alijavam os porquinhos para fora do cocho e muitos destes caíam na lama .Eu achava divertido o jiu-jitsu suíno dos porcos maiores, rapinando a refeição dos porcos menores. Os mais fortes levavam vantagem e os mais fracos herdavam a lama, para consolo e compensação. Naturalmente os maiores eram mais gordos do que os menores.

CAPTURA DE PORCOS SELVAGENS – Talvez servindo café dormido, volto ao safári, descrito com graça e estilo, semanas atrás, pelo nosso Malheiros. Espalha-se milho no chão, os javalis chegam, habituam-se com o milho fácil, perdem o costume de lutar pela comida, armam-se cercas ao redor do milho, os javalis se acostumam com as cercas, pois sentem mais urgência de comer que de fugir. No dia certo, tranca-se a porteira e os javalis perdem a liberdade: são transformados em porcos de chiqueiro. A estória, contada no REPASSANDO, despertou reações iradas. Foi entendida como parábola malévola para a situação do povo brasileiro, seduzido com migalhas por seus capatazes. Guardo, na lembrança, a imagem sensata do nosso Malheiros. Estou convencido de que ele continua incapaz de, pelo prazer da tirada, sair do seu habitual fair-play. Também não vejo proporção entre o aparente susto com as reações indignadas e o propósito desmotivado de afastar-se do REPASSANDO. Prezado Malheiros, leio sempre, com muito gosto, o que você nos escreve. Só insisto que você podia contar mais sobre sua vida aventurosa, andarilha e cosmopolita. Para inveja minha!

MILHO DOS PORCOS E PROGRAMAS SOCIAIS – A parábola suína me dá coceiras no teclado, para tecerem-se ilações venenosas, contra os programas sociais do Governo. Sobretudo contra o Bolsa Família. Em nossas necessidades básicas permanentemente apaziguadas por comida boa e suficiente, em nossos neurônios diuturnamente reciclados e capacitados a funcionar a contento, a tentação é grande. E nela caímos até no meio da noite, quando nos levantamos para matar a sede da ressaca anterior. Confundimos a lâmpada da geladeira com refletores da televisão e desandamos a discursar diatribes contra a calamidade do assistencialismo: - “Nada mais de peixes de graça, arranja o anzol e aprende a pescar!” Nossa “elite branca”, impenitente e contumaz, deblatera deliciada contra “programas paternalistas, que não passam de esmolas ineficazes, continência demagógica com chapéus alheios, milho espalhado na mata, que leva o povo a contentar-se com migalhas, a não querer mais trabalhar, a vender a primogenitura pelo prato de lentilhas!” – Discurso digestivo de quem está bem alimentado. Barriga cheia é mesmo mãe de muitas filosofias, sobretudo da filosofia sobre a fome alheia.

FORMIDÁVEL SELVA DE PEDRAS – Décadas expatriado na Baixada Fluminense, observei o crescimento vertiginoso de Fortaleza, retornando da Praia do Futuro pela Avenida Santos Dumont. No alto da colina, descortinei subitamente a densa floresta de espigões. Nenhum deles existia há trinta anos. Quem compra tanto apartamento? Existe mercado para a pletora de ofertas? Claro que existe, pois a oferta é indissoluvelmente casada com a procura. Mas, chegado da Baixada, eu não estava interessado em leis de mercado. Agente social e pastoral engajado nos imensos bairros proletários na periferia do Rio, lembrei-me do “meu povão”, os operários que constroem os prédios e deles afastam-se, depois de prontos. Multidão incontável dos peões de obra, suando a camisa, carregando tijolos, transportando massa, fazendo paredes subirem, deixando edifícios nascerem. Irracionais inconseqüentes e desfrutáveis certamente não são eles, que fazem o trabalho pesado e ganham migalhas. Caroços de milho espalhados no chão não são isca atraente e graciosa, mas salário perverso da injustiça. Testemunham mais contra os caçadores do que contra os javalis.

ALÉM DA QUEDA O COICE – É notório o desprezo arrogante do opressor pelo oprimido. Igual à aversão pela prostituta, da parte de quem a usa. A libertação dos escravos, no Brasil, foi perpetrada a prestações. Para que a “elite branca” se acostumasse homeopaticamente com o fato inaudito de os negros não serem mais escravos. Persistiremos, muitas décadas ainda, envenenados com os resquícios perversos das relações sociais escravocratas. Ainda demora a constatação do óbvio: quem realmente “construiu os prédios”. Chibata na mão, na língua ou no Código arrenda a presunção de sermos produtores das riquezas. Os “negros” são carregadores de massa e de tijolos, trabalho que, com o tempo, as máquinas realizarão. Cidadão afetivo da Baixada Fluminense, morador por décadas nos subúrbios proletários dos que edificaram o Rio, nunca vacilei na certeza de que vida humana, também a dos pobres, é mais importante do que coberturas milionárias que eles construíram. Fecho a reflexão com poesia do cancioneiro popular, que muito me agrada. Certamente cada um de nós já ouviu isso mais de uma vez:

Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar. Foi um tempo de aflição, eram quatro condução, duas pra ir duas pra voltar. Hoje depois dele pronto, olho pra cima e fico tonto. Mas me vem um cidadão e me diz desconfiado: - “Tu tá aí admirado ou tá querendo roubar?” Meu domingo tá perdido, vou pra casa entristecido, dá vontade de beber. E pra aumentar meu tédio, eu nem posso olhar pro prédio, que eu ajudei a fazer.

Tá vendo aquele colégio, moço, eu também trabalhei lá. Lá eu quase me arrebento, fiz a massa pus cimento, ajudei a rebocar. Minha filha inocente vem pra mim toda contente: - “Pai, vou me matricular!” Mas me diz um cidadão: - “Criança de pé no chão aqui não pode estudar!” Essa dor doeu mais forte:” Por que é que eu deixei o Norte”, eu me pus a me dizer. Lá a seca castigava, mas o pouco que eu plantava tinha direito de comer.

Tá vendo aquela igreja, moço, onde o padre diz amém. Pus o sino e o badalo, enchi minha mão de calo, lá eu trabalhei também. Lá que valeu a pena, tem quermesse tem novena e o padre me deixa entrar. Foi lá que Cristo me disse: - “Rapaz, deixa de tolice, não se deixe amedrontar! Fui eu quem criou a terra, enchi o rio fiz a serra, não deixei nada faltar. Mas o homem criou asas e na maioria das casas, eu também não posso entrar. Fui eu quem criou a terra, enchi o rio fiz a serra, não deixei nada faltar. Hoje o homem criou asas e, na maioria das casas, eu também não posso entrar!”


A estrofe conclusiva muito me agrada. Não porque eventualmente alimente ingênuos triunfalismos eclesiásticos. Não porque nossa Igreja local sentisse demagogicamente peninha dos pobres. Não porque convivi três décadas com as comunidades eclesiais da classe operária. Não porque a Diocese local se organizasse como dom gratuito maternalista para o povão destituído. Pensando bem, acho que minha satisfação com a última estrofe vem da certeza de que, lá embaixo, a Igreja eram realmente eles!

Com amizade - Luís

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