terça-feira, 13 de novembro de 2007

ESTÓRIAS ANTIGAS DE REINOS E REIS

O TEMPO VOA IRREVOGÁVEL – Em painel de azulejo perto da sacristia, no vetusto convento franciscano de Salvador, dois agricultores empurram o arado, puxado por bois. Os homens parecem cansados e sem esperança, perante o horizonte que se abre infinito à sua frente. Como se dissessem: “Por mais que avancemos, nunca chegaremos lá”. O painel está encimado pelo dístico latino: “Volat irrevocabile tempus”: o tempo voa irrevogável. Na etimologia, irrevogável é o que não pode ser chamado de volta. Como, por exemplo, o Natal do ano passado. Parece que foi ontem e já é Natal de novo! Com tanta rapidez, que o comércio antecipa as vendas. E haja correria, em direção a horizontes que nunca chegam! A fim de amarrar o tempo escorregadio e irrefreável em referência consistente, a Igreja celebra Cristo Rei, na conclusão do ciclo que se foi, na abertura do novo ciclo que começa; Tudo passa, só Deus não passa!

QUEM ACREDITARIA NELE? – Tempos atrás, equipe alemã realizava escavações arqueológicas no Egito, em busca dos mundos antigos. Com esforço, suor e cuidado, arrancava do chão restos do passado, resquícios de faraós onipotentes. Tão poderosos que eram considerados filhos de Deus e o povo não podia fitar suas faces divinas. Certo dia, no calor das escavações, surgiram da terra pedaços de papiro amarelado, que despertaram imensa curiosidade. Após cuidadosamente examinados e decifrados, os sábios constataram que se tratava de fragmentos muito antigos do Evangelho de São João. Por coincidência, justamente as páginas que descrevem o processo de Jesus diante de Pilatos. O representante do Imperador romano pergunta a Jesus se ele era rei. Jesus responde que sim, que para isso viera ao mundo, a fim de implantar o reinado da Verdade. Foi quando o assunto parou de interessar a Pilatos. Discussões filosóficas sobre a verdade interessaram a Jesus menos ainda.

RELIGIÃO, INSTRUMENTO DOS CÉSARES – Para lembrar a brevidade passageira do tempo, a Comunidade cristã celebra Cristo Rei, encerrando o Ano Eclesiástico e abrindo as perspectivas dos novos tempos. Cristo asseverou que era rei, nas circunstâncias mais improváveis: preso, de mãos amarradas, torturado no corpo e na alma, coroado de espinhos e não de ouro. Proclamou-se único rei verdadeiro, perante o representante do real soberano deste mundo. O instrumento que Cristo deixou para anunciar seu reino foi a Igreja. A qual, com seus dolorosos equívocos históricos, tantas vezes retardou o nascer do Sol. Em nome desse Cristo, que jamais desejou exercer poder e dominação, os batizados, e até os que se têm na conta de “reborn in Christ”, cometeram e continuam cometendo as piores atrocidades, as mais cruéis opressões. Era o que normalmente sucedia, toda vez que a Fé identificava-se com o Império. Quando o anúncio evangélico era substituído pelo subjugo e a conversão era imposta, como sujeição das consciências.

AVALISTA DE INTERESSES ANTI-EVANGÉLICOS – Quando não convertida, a Gerente oficial do Evangelho funcionou, frequentemente, como instrumento do poder dos homens e não do poder de Deus. Caiu na tentação e confirmou a sociedade de interesse dos poderosos e não a convivência fraterna igualitária, querida por Deus. Para reflexão, na conclusão do presente Ano Eclesiástico, transcrevo trechos da Segunda Carta de Hernan Cortez, conquistador do México, enviado à recém-descoberta América pelos reis católicos da Espanha, a fim de anexar essa parte do mundo ao Império espanhol e ao universo da Fé verdadeira. O relato completo do conquistador não deixa dúvida: os batizados invadiram e saquearam, destruíram e assassinaram culturas e comunidades indígenas, que viviam, mais do que aqueles cristãos, profundos e numerosos valores naturais do Evangelho. Cristo Rei e sua Firma passam a ser usados anti-evangelicamente, como instrumentos e avalistas de interesses do ter e do poder. Vejamos, em trechos da carta de Hernan Cortez, o que os cristãos fizeram com os índios, em nome da propagação da Fé e do Império.

”COMO CRISTÃOS VALENTES ENFRENTAMOS OS INIMIGOS” – Continua o portador do Evangelho para as terras americanas, em sua Carta ao Rei da Espanha: - “Não havia entre nós quem não estivesse com muito temor, por estarmos tão dentro daquelas terras, entre tanta e tão má gente, e tão sem esperança de socorro de parte alguma. Ainda mais que tínhamos algumas pessoas querendo desistir da tarefa, só não o fazendo porque eu lhes disse que, como cristãos, éramos obrigados a lutar contra os inimigos de nossa Fé e já havíamos conseguido, no outro mundo, a maior glória e honra que, até nossos tempos, nenhuma geração havia ainda conquistado”.

“EM DUAS HORAS MATAMOS MAIS DE TRÊS MIL” – E segue em frente, em sua missiva, o representante dos Reis Católicos: - “Chamei alguns chefes da cidade, dizendo que queria falar-lhes, e tranquei-os em uma sala, com o aviso para que, quando ouvissem um tiro de escopeta, caíssem sobre a maior quantidade de índios possível. E assim foi feito! Em duas horas, matamos mais de três mil índios e prendemos na sala todos os chefes. Depois saímos pela cidade e deparamos com a enorme quantidade de gente de guerra que iria nos atacar. Mas, como eles estavam desprevenidos e sem seus comandantes, os desbaratamos na maior facilidade...”

“JESUS CRISTO E NOSSA SENHORA EM VEZ DOS ÍDOLOS” – Conclui a carta do genocida batizado: “Em lugar dos ídolos, mandei colocar imagens de Cristo, de Nossa Senhora e de outros Santos, apesar da resistência de Montezuma e outros nativos, por entenderem que as comunidades se levantariam contra mim. Eu os fiz entender quão enganados estavam em ter esperança naqueles ídolos e que deveriam saber que existe um só Deus, Senhor universal de todos, o qual havia criado o céu e a terra e todas as coisas e, sendo imortal, é a Ele que deviam adorar”.

APRESENTA-SE MAIS UM REI PODEROSO – Pulamos do século XVI na América colonial para o século II antes de Cristo, na Palestina. Naquele Antigo Testamento, deparamo-nos com um monarca poderoso, retratado no livro bíblico dos Macabeus. “Aconteceu que, naqueles dias, foram presos sete irmãos, juntamente com a mãe, aos quais o rei, por meio de golpes de chicote e nervos de boi, quis obrigar a desrespeitar a Lei de Deus. Um deles, tomando a palavra em nome de todos falou assim: - “Estamos prontos a morrer, antes que violar as Leis dos nossos pais!” O segundo jovem, já prestes a dar o último suspiro após muita tortura, falou assim: - “Tu, ó malvado, nos tiras a vida presente. Mas o Rei do Universo nos ressuscitará para a vida eterna, a nós que morremos por suas Leis!”

“PARA TI NÃO HAVERÁ RESSURREIÇÃO”
– O rei e seus esbirros passaram então a supliciar o terceiro rapaz, que falou cheio de confiança: - “Do céu recebi estes membros e por causa de suas leis eu os desprezo, pois do céu espero recebê-los de novo!” Acabada com a vida deste também, submeteram o quarto irmão às mesmas perversidades, desfigurando-o de tanto suplício. Estando quase a expirar, o jovem falou assim: - “Prefiro ser morto pelos homens, tendo em vista a esperança dada por Deus, que um dia nos ressuscitará. Para ti, porém, ó rei, não haverá ressurreição para a vida!” O rei e os que o acompanhavam ficaram impressionados com a coragem daqueles adolescentes, que consideravam o sofrimento como se nada fosse. E assim, os sete irmãos Macabeus, um por um, deixaram ao mundo e à história a imortalidade do seu testemunho;

MORTE CHEGA TAMBÉM PARA OS POLTRÕES – O nome daquele rei teria ficado ignoto na lixeira da história, não tivesse ele pegado carona, com sua perversidade, no heroísmo dos Macabeus. O nome do rei Antíoco Epífanes foi conservado, para sua própria vergonha. E a fragilidade absoluta dos papiros amarelados, desenterrados no Egito no começo do século passado, testemunha a inutilidade das múmias para projetos de imortalidade. Os heróis conquistadores do século das Descobertas são vistos hoje como grandes criminosos. Tudo passa, todos passaram. Volat irrevocabile tempus! A vida humana, dos santos e dos pecadores, é como capim, que nasce no telhado: seca aos primeiros calores do sol. Na voragem incontrolável da brevidade terrena, somos convidados a amarrar o barco em pontilhão que resista às marés.

QUEBRAMOS A LÂMPADA COM NOSSAS PEDRADAS – Todo novembro, a Igreja conclui o Ano Litúrgico, rememorando Cristo Rei, antes de ingressar em novo Advento. O Dono da Festa, diante de Pilatos, afirma ser rei, nas condições mais improváveis. Eis mais um Natal “ante portas”, trazendo ansiedade compulsiva de nos locupletarmos de tudo aquilo que faltou no berço do Homenageado. Como pobretões enricados, possivelmente ressentidos com a pobreza da infância, nos vingamos da pobreza de Cristo, enchendo-nos de badulaques supérfluos. Na inconstância da acumulação amarramos a canoa, com a segurança presunçosa ilusória, com que os faraós se amarraram às pirâmides “eternas”. Elas se revelaram menos duradouras do que o conteúdo dos papiros amarelados. A título de cujos conteúdos e cujas propostas, os batizados do século XVI saíram, mundo afora, matando os índios. Com a insensibilidade e esquizofrenia moral, com que nós, batizados de hoje, garantimos que a miséria e o sofrimento do próximo são fruto do destino e não obra coerente dos nossos pecados.

Com amizade de sempre. – Luis –

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