CHEGOU DE MANSINHO SEM CHAMAR ATENÇÃO – No célebre romance do escritor russo Dostoievski OS IRMÃOS KARAMAZOV, aparece um dos episódios literários mais badalados da literatura universal: o retorno de Cristo à terra e seu encontro com o Grande Inquisidor. Aconteceu em Sevilha, capital da Inquisição espanhola, entre o século XV e XVI. Jesus então apareceu novamente no mundo! Mas, dessa vez, não houve estrelas anunciando nem coros angélicos, tecendo loas a Deus nas alturas. Não sucederam fenômenos meteorológicos para anunciar sua vinda. Ao contrário, ele chegou de mansinho e quase sem ser percebido. No entanto, as pessoas piedosas o reconheceram e sentiram irresistível atração por ele. Cercaram-no de carinho, amontoaram-se ao seu redor, a multidão o seguiu. Jesus andou discreta e modestamente entre eles, sempre com o sorriso de inefável misericórdia. Estendia-lhes as mãos para abençoar. Em meio à multidão excitada, um velho, cego desde a infância, recuperou milagrosamente a visão.
RESSUSCITOU SORRINDO ARREGALADA DE ESPANTO – A multidão chorou emocionada e beijou o chão aos seus pés. As crianças jogavam flores à sua frente e cantavam hosanas. Nos degraus da Catedral, um triste cortejo conduzia, aos prantos, um caixãozinho aberto. Em seu interior, quase escondida pelas flores, jazia uma criança de sete anos, filha única de um cidadão importante. Exortada pela multidão, a mãe chorosa voltou-se para o Recém-chegado e suplicou-lhe que trouxesse de volta a vida da menina morta. O cortejo fúnebre parou e o caixão foi depositado aos seus pés, nos degraus da Catedral. Ele olhou compassivo o pequeno cadáver e, com voz mansa, ordenou: - “Menina, levante-se!” A menina logo sentou-se no caixão, os olhos arregalados de espanto, ainda a segurar o buquê de rosas brancas, que fora colocado em suas mãos.
FORAM SE MANDANDO A COMEÇAR PELOS MAIS VELHOS – Mais adiante, com o povo reunido ao seu redor, escribas e fariseus trouxeram uma mulher apanhada em adultério. Colocando-a no meio da roda, disseram ao Recém-chegado: “Mestre, esta mulher foi flagrada cometendo adultério. Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres. O que dizes a isso?” Eles perguntavam isso para experimentar e ter motivo para acusá-lo. O Recém-chegado, inclinando-se começou a escrever no chão, com o dedo. Como insistissem em perguntar, ele ergueu-se e falou: - “Quem dentre vós não tiver pecado atire a primeira pedra” Inclinando-se de novo, continuou a escrever no chão. Ouvindo isso, foram saindo um por um, a começar pelos mais velhos. Jesus ficou sozinho com a mulher que estava no meio, em pé. Ele levantou-se e perguntou: - “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” Ela respondeu: - “Ninguém, Senhor!” Jesus então lhe disse: - “Eu também não te condeno! Vai em paz e não peques mais!”
“SE HOUVE CRIME ELE TEM QUE SER APURADO” – O Grande Inquisidor observou meticulosamente, de longe, o que estava acontecendo. Indignou-se contra o alvoroço extemporâneo, que o Recém-chegado provocava, em meio ao povo simples e ordeiro. Estava meridianamente convencido de que milagres fora de hora, realizados à margem da instituição, só servem para despertar agitação e consequentemente transgressões presunçosas da indispensável submissão às sagradas tradições. Repeliu encolerizado o direito que o Recém-chegado se atribuíu de passar por cima da Lei, eximindo a mulher adúltera da merecida execução, prevista no Código. Que a criminosa pague seu pecado, conforme a Lei de Deus e a Lei dos homens. Não se pode passar por cima da Lei! Em mundo que precisa ser governado com mão de ferro, não tem sentido deixar-se levar por compaixões subjetivas. Elas até que são comoventes mas, se houve um crime, esse tem de ser apurado! Em que sinagoga de terceira aquele caipira deve ter estudado as Escrituras? Sendo de Nazaré, já se sabe que não pode ter sido coisa muito boa!
ESCONDIDOS EM CANTO ESCURO DA PRAÇA – Vendo que o Recém-chegado era realmente elemento perigoso, o Grande Inquisidor convocou seus guarda-costas, para marcar o homem mais de perto. Seguiram à distância a multidão, que se comprimia ao redor do desconhecido. Mantiveram-se ocultos, em canto sombreado da praça, enquanto o Recém-chegado abria o verbo, nos degraus da Catedral: - “Os escribas e fariseus assumiram a cátedra de Moisés. Fazei e observai tudo o que eles disserem, porém não imiteis suas ações, pois eles falam mas não fazem. Amarram fardos pesados nos ombros dos outros, mas eles mesmos não querem movê-los nem sequer com um dedo... Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Fechais aos outros o Reino dos céus, mas vós mesmos não entrais nem deixais entrar aqueles que desejam! Percorreis o mar e a terra para converter alguém e, quando o conseguis, o tornais merecedor do inferno, duas vezes mais do que vós”.
TAL ELEMENTO NÃO PODE FICAR SOLTO – A indignação crescente fazia o Grande Inquisidor e seus guarda-costas apurarem os ouvidos. O Recém-chegado, nos degraus da igreja, continuava impávido seu discurso: - “Ai de vós, guias de cegos! Dizeis: “Se alguém jura pelo Santuário, não vale; mas, se jura pelo dinheiro do Santuário, então o juramento vale. Pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho e deixais de lado o mandamento mais importante da Lei, que é a misericórdia. Filtrais o mosquito, mas engolis o camelo. Sois como sepulcros caiados: por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos e de podridão. Por fora pareceis justos diante dos outros; mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e injustiça!” A essa altura do sermão, o Grande Inquisidor e seu grupo de guarda-costas retirou-se, a fim de confabular a prisão imediata do agitador. Não pode ficar solto um indivíduo de tanta periculosidade!
RESSUSCITANDO MORTOS SEM LICENÇA DO BISPO – A cura do cego, a ressurreição da menina, a agitação popular, a transgressão arrogante da Lei de Moisés, perdoando a mulher adúltera, dispensando-a do castigo prescrito, tudo foi testemunhado e ciosamente acompanhado pelo Grande Inquisidor, quando ele patrulhava a cidade com seus séqüito de guarda-costas. Na ficção de Dostoievski, o cardeal de Sevilha era um velho de quase noventa anos, alto, empertigado e impenitente, a cara enrugada, mas os olhos profundos, cheios de brilho sinistro. Tal era o pavor que o Grande Inquisidor inspirava que a multidão, apesar das circunstâncias extraordinárias, caiu em amedrontado silêncio, a fim de dar-lhe passagem. Ninguém também ousou interferir quando, por ordem do velho prelado, o Recém-chegado foi sumariamente preso pelos guarda-costas e levado para o cárcere. O verdadeiro significado da parábola está no que vem depois. O leitor espera, claro! que o Grande Inquisidor fique devidamente horrorizado, ao saber a verdadeira identidade do Prisioneiro. Mas não é o que acontece!
SEU CRIME FOI REVELAR-SE FILHO DE DEUS – Quando o Grande Inquisidor visita Jesus na cela, está claro que sabe muitíssimo bem quem é o Prisioneiro. Mas esse conhecimento não o detém. Pelo contrário, a identidade do Prisioneiro é o próprio motivo da prisão, pois é preciso manter a Lei e a Ordem na Cristandade. Na presente crônica, navego mais em minha fantasia do que nos trilhos de Dostoievski. O Grande Inquisidor, com base em seu mandato, exige satisfação da conduta de Jesus. Ninguém pode transgredir a Lei impunemente. Pergunta ao Prisioneiro, com que autoridade ele aparece outra vez por aqui fazendo milagres, desautorizando a Justiça e inquietando o povo? De que maneira se comportará o povo, sem as rédeas curtas da autoridade? O que inibirá a lubricidade das mulheres, senão o medo do castigo? Não é a misericórdia mas a justiça, que faz o mundo funcionar. Se, na administração de justiça, o juiz se deixa levar por compaixão, como assegurar a permanência de um dos fundamentos da sociedade, que é a proporcionalidade inarredável entre transgressão e pena? Apuração implacável, minuciosa e necessário castigo fazem a sociedade caminhar. Naquela famigerada Sexta Feira, o Paraíso certamente não ficou mais bonito, com a presença do reles marginal absolvido!
“SUMA DE VEZ E NÃO APAREÇA MAIS !” – O Grande Inquisidor foi em frente, na récita do libelo acusatório. Passou, na cara do Prisioneiro, que era arrogância inadmissível, desfrute gratuito da onisciência, escrever no chão pecados ocultos de cidadãos acima de qualquer suspeita! Hoje todos eles estão de acordo que tamanha ameaça não pode continuar solta nas ruas. Com base nas acusações e como justa punição às palavras injuriosas, pronunciadas em público contra autoridades e cidadãos de bem, o Grande Inquisidor condena o Recém-chegado à fogueira. Jesus reage apenas, dando um beijo de perdão, na face enrugada do velho. O beijo ardeu-lhe na alma! Arrepiando-se todo com um sinal de afeto que nunca recebera em vida, o velho abre a porta da cela e ordena: - “Vai-te embora daqui e não voltes nunca, nunca mais!” Libertado na escuridão da noite, o Prisioneiro desaparece para sempre, para jamais tornar a ser visto. O Grande Inquisidor, plenamente consciente do que acabara de acontecer, aferrou-se ainda mais à sua impenitência, reassumindo impávido a rotina implacável, na distribuição de condenações. Os noventa anos de vida enquadrada não foram suficientes para fazê-lo descobrir que o especificamente cristão não é o bom comportamento formal, pagãos igualmente se comportam bem. O que distingue o cristão é a misericórdia!
Com amizade - Luís
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
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